Os primeiros da família a ir para a universidade levam sonhos e medos

A paixão, os amigos e uma juventude partidária levaram Filipa, Diogo e José a serem os primeiros da família no ensino superior. Estas são as histórias de três jovens que encontraram a motivação para quebrar o paradigma. E a história de quem foi o primeiro com um diploma.

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Os irmãos de Diogo Teixeira “são de uma geração diferente”. Aos 18 anos, a opção de ambos foi trabalhar. Diogo foi o primeiro da família a ir para a universidade Adriano Miranda

O pai tinha doze irmãos e o orçamento da família não chegava para que todos seguissem os estudos para lá do ensino básico. A mãe desistiu da escola cedo. Nunca quis estudar. Aos 17 anos, Filipa Cunha via a sua vez a chegar e a vontade dos pais a encaminhá-la no mesmo sentido: os estudos acabavam ali. Ia trabalhar, se pudesse.

Os irmãos de Diogo Teixeira “são de uma geração diferente.” Aos 18 anos, a opção de ambos foi trabalhar. Hoje, com 29 e 31 anos, estão no estrangeiro, onde gostavam também de ter o irmão. Mas o mais novo escolheu seguir os estudos no ensino superior. Diogo e Filipa são a primeira geração a ir para a universidade.

Filipa insistiu muito. “Fiz muita força mesmo. Foi muito complicado convencer os meus pais e era muito difícil para mim pensar que acabava ali.” Ali era o 12.º ano, que terminou em Julho, no Colégio de São Gonçalo, em Amarante. Insistia “por paixão”, queria estudar Multimédia.

Apenas com um salário mínimo a entrar nos bolsos da família de quatro pessoas – pai, mãe e duas filhas -, as contas eram simples: “Não dava para ir.” Pesquisou e viu que a prima, a estudar Gestão, “não pagava quase nada” graças à bolsa de estudo para estudantes do ensino superior. O plano de Filipa é conseguir o mesmo apoio.

Mesmo assim, o caminho que convenceu os pais a seguir “vai ser difícil.” A irmã, perto de ter 14 anos, “não tem muita paixão” pela escola e Filipa vê-se a única em casa a olhar com esperança para o ensino superior. “É a minha oportunidade”, confessa.

“Um murro no próprio estômago”

As manhãs são as folgas de Diogo Teixeira, de 18 anos. O resto da semana desdobra-se entre dois empregos: as tardes e noites de semana passadas ao balcão de um café e os fins-de-semana num supermercado. Gosta de ambos, mas prepara-se para deixar o trabalho no café à beira de casa, em Amarante, para ir para a universidade noutra cidade. Nem os pais, nem os irmãos, nem tios ou primos o fizeram.

Até há dois meses, a universidade também não entrava nos seus planos. “Pensava que não era capaz de passar nos exames. Foi uma decisão um bocado em cima da hora. Mas acordei.” Os amigos puxaram por ele. "Consegui cumprir com tudo.”

Tem a candidatura à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto feita e uma auto-estima renovada. “No secundário andava desanimado. Desleixei-me. Para mim, era como se não fosse nada. Mas agora, sei o que quero. O curso não me assusta. Sei que tenho capacidades para o fazer.”

Mas os irmãos já lhe “disseram para ir para a beira deles, trabalhar.”

Afinal, tomar a decisão de ir para a universidade foi “um murro dado no próprio estômago.” A mãe, viúva, gere um restaurante. Diogo tem que financiar os estudos. “Não quero pressionar a minha mãe economicamente. Quero ser eu capaz de fazer isto tudo.” E “pode ser que arranje mais um trabalho durante a semana.”

Ter as estatísticas a favor

Diogo é um dos 52.579 estudantes que se candidataram à primeira fase do concurso para entrar no ensino superior público, num ano em que o número de candidatos volta aos níveis registados antes da crise financeira.

Já Filipa vai concorrer na segunda fase do concurso, que abre esta segunda-feira. “Se eu não fosse para a faculdade, nunca iria trabalhar na área de que eu gosto. É claro que há pessoas com cursos superiores que não trabalham na área, mas assim tenho mais hipóteses”, diz. Com um curso superior, teria finalmente as estatísticas a seu favor.

Ainda assim, é preciso gerir expectativas, diz o sociólogo Elísio Estanque: “Já estamos longe do tempo em que o filho entrar na faculdade era sinónimo de trabalho estável, garantia de vida condigna e boas perspectivas de carreira.” E antecipa que a precariedade – “devido ao medo e insegurança dos estudantes” - começa antes da entrada no mercado de trabalho.

Apesar disso, a socióloga Margarida Mesquita reitera que estudar é “sempre uma aposta ganha.” A investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa, destaca a necessidade de olhar para o “ensino superior para além da sua função profissionalizante, mas como um local de formação das pessoas.” Mesmo que o emprego não corresponda às expectativas de pais e filhos, “estes jovens saem da universidade pessoas mais conscientes, mais cultas, mais integradas, e prováveis de maior sucesso.”

O objectivo de Filipa é entrar no curso de Ciências da Comunicação e trocar a pequena freguesia de Canadelo – que tinha 121 habitantes em 2011 -, em Amarante, pela cidade de Braga. Depois, quem sabe, “trabalhar numa revista.”

Não carrega “um fardo” por ser a primeira lá de casa a ir para a universidade, mas a pressão existe. “Afinal os meus pais nem estavam com muitas ideias de me deixar ir, mas eles não tiveram as mesmas oportunidades que eu tenho agora.” A ansiedade vem daqui: conseguir agarrá-las.

“É melhor procurar um outro caminho”

José Nuno Teixeira encontrou motivação numa juventude partidária. “Admito que foi por ver os outros, com estudos, com um estatuto, e não querer ficar para trás.” Foi aí que “atinou”: “Houve uma altura em que me baldava. Repeti o 7.º ano. Mas eu tenho dois irmãos que não estudaram e estão na fábrica. O exemplo deles fez-me perceber que tinha que fazer isto”, conta o jovem de Felgueiras.

Aí a motivação transformou-se em ambição. Durante o secundário, interessou-se por política e foi presidente da associação de estudantes. Alargou os horizontes. Aos 19 anos, quer entrar no curso de Direito, na Universidade de Coimbra, na segunda fase do concurso de acesso. Não quer um curso que o “feche numa área.” “Mas também não quero ser advogado a vida toda.”

A candidatura ainda está em aberto. Afinal os pais, ambos funcionários fabris, “ganham pouco mais do que o salário mínimo.” Um dos dois irmãos, de 24 anos, pede-lhe para pensar em opções mais próximas de casa. Há a possibilidade de “a qualquer momento ter que vir a parar os estudos por falta de financiamento. O meu irmão diz-me que é melhor procurar um outro caminho.”

Se ficar, o emprego é “quase certo”

O abandono do ensino superior por falta de dinheiro foi especialmente frequente nos anos da crise, mas o problema é transversal a outros momentos. As bolsas, os complementos e o recurso ao crédito são opções. Mas nem sempre chega.

Para José Nuno, é “um dilema.” O emprego é-lhe “quase certo” se decidir ficar. Graças à indústria, principalmente do calçado, o desemprego em Felgueiras cai desde 2009. “Os meus irmãos entraram logo na fábrica quando deixaram de estudar. Mas todos ambicionamos mais, não é?” A questão financeira é a única capaz de lhe “adiar o sonho.”

Salete Sousa esteve para seguir o mesmo caminho. Com a mãe desempregada, pensou em trabalhar uns anos, juntar dinheiro e depois tirar o curso de Direito que ambicionava. Os amigos convenceram-na a não adiar. Não precisava: a bolsa de estudo e o completamento de alojamento pagar-lhe-iam as propinas e a renda.

Apoios que não conhecia até ao dia da matrícula, quando chegou aos serviços de acção social da Universidade de Coimbra. Nessa tarde de sexta-feira, a 13 de Setembro de 2013, saiu do gabinete com a chave do seu quarto na residência na mão. As aulas começavam na segunda. “A partir daí, mudei um bocadinho todos os dias”, conta. Aos 22 anos, é a primeira licenciada da família.

Há quatro anos trocou a freguesia de Macieira da Lixa, em Felgueiras, por Coimbra. Este ano, muda-se para Braga para fazer um mestrado. Foi “sempre atrás do sonho”, com a sorte de pelo caminho “conhecer as pessoas certas”: das colegas de residência que tinham histórias “tão parecidas” com as suas aos amigos de curso com “estilos de vida diferentes.”

“Agora deixa de ser a sorte a mandar em mim”

A socióloga Margarida Mesquita antecipa que “não tendo referências [sobre o ensino superior] em casa, a adaptação é mais difícil do que é para os alunos com pais licenciados”, em especial no primeiro ano, onde é maior o risco de insucesso ou desistência. Mas podem conhecer uma transição "mais fácil" com a ajuda de professores, amigos ou familiares mais afastados.

O que realmente virá a condicionar o futuro destes jovens, diz a investigadora, “são as expectativas que a família tem.” “Um reforço das ambições dos jovens pode ter resultados positivos se eles tiverem sucesso. Mas se a família achar que este ensino é apenas um adiar da entrada no mercado de trabalho, a ansiedade no jovem pode ter impacto no sucesso escolar e degradar a comunicação da família”, explica.

Salete encontrou “solução no sistema.” Mas a mesma dúvida voltou assola-la ao fim de quatro anos de curso, quando “não sabia o que fazer com um diploma na mão.” Inscreveu-se em mestrado, que vai conjugar com as aulas e o estágio para a Ordem dos Advogados. “Tive medo, sim, mas hoje tenho um conjunto de portas abertas que não teria se tivesse ficado em casa. Estaria a trabalhar numa fábrica de calçado, se tivesse sorte. Agora deixa de ser a sorte a mandar em mim, é o mérito.”

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