Um combate a dois

O Porto distingue-se novamente por boas razões: tem bons candidatos e acabará por eleger um presidente da câmara à altura das suas necessidades.

Há quatro anos atrás, na noite eleitoral autárquica, o Porto surpreendeu o país elegendo o independente Rui Moreira para a presidência da câmara e relegando os dois maiores partidos portugueses para votações verdadeiramente inauditas. Na sequência desses resultados, Luís Filipe Meneses decidiu retirar-se da vida política activa, remetendo-se para um silêncio de que nunca mais saiu.

Menezes, é justo recordá-lo, tinha sido várias vezes plebiscitado como presidente da Câmara de Gaia e funcionara durante muitos anos como a verdadeira Némesis do austero Rui Rio, que então liderava a autarquia portuense. O seu esmagador insucesso de há quatro anos resultou de um conjunto de circunstâncias que se conjugaram no sentido de condenar uma das suas dimensões políticas, aquela que estaria associada à propensão para um modelo de governação despesista e financeiramente pouco responsável. Noutras circunstâncias poderia ter obtido facilmente um resultado radicalmente diferente.

Já Manuel Pizarro reagiu de forma totalmente diversa. Logo no serão eleitoral pronunciou um curioso discurso, assumindo-se como um dos vencedores da contenda e auto-atribuindo-se elevados méritos pela derrota do candidato do PSD. Com grande inteligência política, Manuel Pizarro estabeleceu ainda a quente uma fronteira simbólica que o colocava do lado dos vencedores e lhe outorgava um estatuto que lhe permitiria vir a estabelecer uma relação não assimétrica com o presidente da câmara eleito. Reconheçamos que foi um golpe de génio, repleto de astúcia e com um enorme potencial de transformação da realidade.

Os passos seguintes resultaram em grande parte da declaração genésica proferida naquela noite. Rui Moreira e Manuel Pizarro celebraram um acordo de governação municipal, conceberam e executaram um processo de fusão dos respectivos programas e durante mais de três anos exibiram publicamente um entendimento de tal ordem fraternal que anulava na própria memória colectiva a noção de qualquer divergência pretérita. Tudo indicava que se apresentariam a novas eleições coligados, apelando ao reconhecimento do trabalho prosseguido e insinuando os proveitos públicos que poderiam resultar de tão amistoso e útil encontro político. Parecia um conto de fadas, só que os contos de fadas têm um pequeno mas decisivo problema — não são reais.

Nalgum momento haveria de surgir uma razão para provocar o inevitável dissídio. Moreira sabia que o seu estatuto e o prestígio associado a esse estatuto, o de candidato independente, resultaria afectado por uma ligação pré-eleitoral a um partido com a dimensão e a identidade do PS, e, por outro lado, o PS dificilmente poderia conviver com o espectro da sua diluição no seio de uma candidatura liderada por um homem historicamente conotado com a direita liberal portuense. Como nos bons romances policiais, era tudo tão óbvio que ninguém parecia dar pela evidência da coisa. Mas há sempre um final e esse final surgiu com o patrocínio da secretária-geral do PS, Ana Catarina Mendes, que ajuizadamente se empenhou na salvaguarda da autonomia do partido na segunda cidade do país, e com a pronta resposta do próprio Rui Moreira, que aproveitou a ocasião para se libertar de uma parceria indesejada.

A pouco menos de um mês das eleições, o que é curioso é que o verdadeiro confronto no Porto se dê entre estes ex-parceiros desavindos que polarizam o debate político em curso. Ora isso é um mérito dos dois, mas muito em particular de Manuel Pizarro. Sem desprimor para os outros candidatos, que são todos eles de elevada qualidade, a verdade é que Moreira e Pizarro são os dois únicos pretendentes à presidência da câmara que exibem neste momento as credenciais necessárias para o desempenho dessa função. Álvaro Almeida, Ilda Figueiredo e João Teixeira Lopes estão remetidos, por razões diversas, para uma espécie de papel tribunício onde o discurso da denúncia e da indignação prevalece inteiramente sobre o discurso propositivo e alternativo. Ninguém acredita que possam projectar-se para além dessa dimensão puramente crítica. Nesse registo tem-me surpreendido, de resto, a especial virulência retórica patenteada por João Teixeira Lopes e especialmente dirigida contra o Partido Socialista, curiosamente em nome daquilo que ele próprio designa como uma fidelidade ao espírito da geringonça que vigora a nível nacional. Francamente não creio que essa inusitada violência lhe venha a conceder especiais réditos eleitorais.

Assim sendo, os portuenses vão ter de acabar por escolher entre Rui Moreira e Manuel Pizarro. Moreira tem a vantagem de ser o presidente da câmara em funções e poder apresentar um balanço que está muito longe de ser negativo. Isso concede-lhe algum favoritismo. Mas Manuel Pizarro aparece hoje muito mais forte do que há quatro anos — é mais conhecido, é muito mais apreciado e alcançou um estatuto no plano simbólico que o equipara praticamente à condição de um presidente da câmara municipal. Nos debates em que tem participado e nas entrevistas que tem concedido revela um profundo conhecimento da cidade e uma invulgar imaginação programática, enriquecendo substancialmente a discussão eleitoral presente. Isso torna-o num candidato temível, que a meu ver dispõe de todas as condições para poder aspirar à vitória. Para que tal suceda terá de hegemonizar o voto do espaço político que corresponde habitualmente ao PS, de captar algum voto junto do eleitorado tradicional do PC e do BE e de remeter Rui Moreira para a condição de candidato da direita liberal e conservadora da cidade do Porto. Não é tarefa fácil mas também não é empreendimento impossível.

Uma coisa é certa: por muito estranho que pareça não vão ocorrer mudanças radicais na governação da cidade do Porto. Moreira e Pizarro são os únicos que podem ganhar e na realidade não são muito diferentes um do outro. Um representa um centro-direita liberal, não desprovido de preocupações sociais e cosmopolita; o outro representa um centro-esquerda moderado, amplamente aberto à iniciativa privada e muito distanciado de qualquer tipo de extremismo ideológico. Nos tempos que correm, tão dados a sectarismos e a exageros demagógicos, um quadro político desta natureza merece ser saudado.

O Porto distingue-se novamente por boas razões: tem bons candidatos, vai ter excelentes debates e acabará por eleger um presidente da câmara à altura das suas necessidades. Rui Moreira e Manuel Pizarro são dois homens de elevada dimensão política que honram a cidade do Porto. Por uma questão de rigor e de seriedade, não posso deixar de afirmar que sou apoiante de Manuel Pizarro, a quem me liga uma antiga amizade. Essa circunstância, contudo, não me cega ao ponto de desvalorizar as demais candidaturas.

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