As mulheres de Atenas e o rapaz de Pyongyang

Se querem mesmo acabar com as coisas “incorrectas” na arte, acabem com o mundo. Kim Jong-un tiraria mais uma foto, a rir-se. Se tivesse tempo.

O caso não é para brincadeiras, já se sabe. Mas não deixa de ser algo cómico ver as fotografias que surgem nas agências “documentando” a temível relação de Kim Jong-un com bombas e mísseis. E lá o vemos, confiante e sorridente, entre homens fardados com caderninho e esferográfica na mão. É uma encenação antiga, que já passou de pai (Kim Il-sung) para filho (Kim Jong-il) e depois para neto (Kim Jong-un), sem que faltem sorrisos ou caderninhos. E no meio, reluzente, a bomba! – ou o que quer que esteja dentro daquela espécie de cloche gigante que tão mal fica nas fotografias. O que faz Kim? Ri-se. Não só ele. Os do caderninho também riem muito, e até levantam os braços em júbilo quando se imagina que algum míssil norte-coreano voou. A nós, que vemos as imagens, resta-nos a interrogação: o que raio escreverão eles naqueles caderninhos?

Não sabemos, mas sabemos o que escreve Chico Buarque nas suas canções. Ouvimo-lo, lemo-lo e é um prazer renovado voltar à sua obra, felizmente incompleta (sinal de que vive e compõe). Claro que não agrada a todos de igual modo. Ainda agora uma canção de Caravanas, o seu mais recente disco, foi acusada de propagar estereótipos machistas. Em Tua cantiga há um homem cujas juras de amor incluem trocar mulher e filhos pela nova amada, fazendo-a “rainha” do futuro lar. Os que se indignaram, além de não terem sequer percebido a canção (é o protagonista que “fraqueja”, não a mulher com quem casou ou a outra que ele ama), ignoram esta coisa básica: uma canção é uma história, com protagonistas, ficcionada. Como um livro, um filme, uma peça de teatro, uma ópera. Por mais que se inspirem na vida, são representações, ficções dela. Pensar o contrário leva ao absurdo de haver actores de filmes ou novelas insultados e agredidos pelas suas “maldades”.

Mas Chico Buarque já tinha sido acusado de “machismo” antes. A sua canção Mulheres de Atenas foi criticada, no Brasil, por fazer “a apologia da submissão” das mulheres. “Quando fustigadas não choram/ Se ajoelham, pedem imploram/ Mais duras penas; cadenas.” Sucede que a canção foi feita para uma peça de teatro de Augusto Boal (co-autor da música) intitulada, vejam só a ironia, Lisa, a Mulher Libertadora. E além da Atenas clássica ali retratada, cita-se também a mitologia grega, em particular a Odisseia, de Homero. Chico defendeu-se assim, à época, das acusações: “Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar.” Mas houve quem não quisesse ouvir.

As canções têm destas coisas. Vejam-se, por exemplo, Com açúcar com afeto, de Chico, ou Esse cara, de Caetano. Trauteadas por milhões, também elas têm, nos seus personagens, estereótipos que horrorizariam os críticos de hoje. Na primeira, uma mulher faz “o doce predilecto” do marido para ele “parar em casa”, mas nem assim o segura: ele faz-se aos bares, à boémia. E quando volta, tentando enganá-la com vãs promessas, que faz ela? Põe-no na rua? Atira-lhe com o jantar à cara? Ameaça trocá-lo pelo primeiro galã na esquina? Não. “Ao lhe ver assim cansado/ Maltrapilho e maltratado/ Ainda quis me aborrecer?/ Qual o quê!/ Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra você.” Horror nas hostes feministas! Só que a canção foi feita por Chico por encomenda de uma mulher, e que mulher: Nara Leão, que logo a cantou.

Esse cara, de Caetano Veloso, seria riscada a tinta vermelha do princípio ao fim. Ouçam-na: “Ah! Que esse cara tem me consumido/ A mim e a tudo que eu quis/ Com seus olhinhos infantis/ Como os olhos de um bandido/ Ele está na minha vida porque quer/ Eu estou pra o que der e vier/ Ele chega ao anoitecer/ Quando vem a madrugada ele some/ Ele é quem quer/ Ele é o homem/ Eu sou apenas uma mulher.” Ele é “O homem”? E ela “apenas uma mulher”? Façam soar os alarmes!

Se tal censura fosse levada ao extremo, nem o Bambi escapava. Nem os clássicos da literatura, muito menos os westerns, os filmes de época (quanta violência e prepotência guarda a história) ou a esmagadora maioria das obras que por aí andam, antigas ou contemporâneas. Não é possível, por exemplo, fazer um filme sobre racismo que não contenha afirmações racistas, nem um filme sobre terrorismo sem “terroristas” a vangloriar-se. Se querem mesmo acabar com as coisas “incorrectas” na arte, acabem com o mundo. Kim Jong-un tiraria mais uma foto, a rir-se. Se tivesse tempo.

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