Downsizing, ou como diminuir o apocalipse

Logo na abertura, o Festival de Veneza encontrou o filme que vai ficar como memória futura desta edição. Mas, mais do que um grande filme, Alexander Payne trouxe ao Lido um espectáculo "global". E uma actriz que, tendo roubado o palco a Matt Damon, talvez venha a roubar um Óscar.

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Hong Chau: a aparição da actriz vietnamita (Óscar no horizonte?) muda a escala de Downsizing DR
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Matt Damon com Alexander Payne durante as filmagens DR

Mais do que de um grande filme de abertura, um festival de cinema precisa de um filme que ponha toda a gente a falar nele, ou de uma parte dele, depois da abertura. É uma forma de, nos anos seguintes, as pessoas se lembrarem desse festival. Veneza 74 encontrou-o. Chama-se Downsizing, de Alexander Payne (em competição), e o que está a acontecer por estas horas no Lido é o que vai acontecer nas semanas e nos meses depois da estreia.

O buzz, como se diz, chama-se Hong Chau, actriz de origem vietnamita, criada em Nova Orleães, com vida artística muito localizada na televisão (mas entrou no Vício Intrínseco, de Paul Thomas Anderson…). Interpreta a personagem de uma dissidente vietnamita que chegou aos Estados Unidos dentro de uma caixa de televisão. É que em Downsizing há personagens, como ela, que medem 12 centímetros de altura, escolheram diminuir por razões ambientais, se calhar por razões económicas (mais pequenas precisam de menos espaço, menos meios, podem viver em palácios, sentem-se assim mais ricas – e um iate pode ser enviado para qualquer parte do mundo por correio) e, certamente, porque a infelicidade está sempre à espreita. Querem passar para “o lado de lá”. Eis o ABC das seitas.

Hong Chau aparece a meio do filme. Vai levar Downsizing a mudar de escala. Até então estávamos com a personagem de Matt Damon, americano médio, profundamente frustrado, embora não o saiba logo nem seja brilhante a explicitá-lo, que escolhe diminuir. Acontece que Damon fica ainda mais triste depois de ter encolhido – por razões que não podemos revelar, mas é um golpe rude. Mas quando encontra a personagem de Hong Chau, que perdeu uma perna no seu êxodo do Vietname, fica a massajar-lhe o coto e ficam os dois a falar sobre o fim do mundo num fiorde norueguês.

Isto não é só o que Hong Chau faz a Damon, isto é o que Hong Chau faz ao filme: muda-lhe a escala. Determinante é aquele monólogo que lhe cabe, numa intervenção em que o realismo e a precisão do sotaque vietnamita são postos ao serviço da construção de um “boneco”, numa intervenção em que o virtuosismo de escrita de argumento é habitado por um exímio domínio da comédia física obssessiva por parte de uma actriz: Hong Chau a interrogar Damon, que se havia deitado com ela, que tipo de fuck fora aquele, que tipo de fuck dos oito tipos de fuck que os americanos conhecem… (Brevemente num YouTube perto de nós.)

Até aí, em Downsizing, tínhamos Matt Damon e a mulher (Kristen Wiig), a tristeza no Nebraska natal de Payne. Mudaram de tamanho, mas o filme mostra-se nessa altura sobretudo embalado pelo acabrunhamento, sem fazer fogo de artifício sequer com os efeitos especiais pelos quais Payne e o seu cúmplice nos argumentos, Jim Taylor, esperaram dez anos (com dois Óscares pelo caminho: Sideways, de 2004, e Os Descendentes, de 2011) antes de poderem avançar.

Mas depois surge – antes de Hong Chau – o austríaco Christoph Waltz, a fazer o seu habitual, um “número”, que neste caso é o de consciência cínica do filme, como a voz que com ele dialoga ou que o intercepta. Mas acontece ao cinismo o que acontece à prestação de Waltz: desiste de ser pensamento, de fazer curto-circuito, de interrogar, para se deixar integrar e se transformar em puro show. Não estamos já no território de expansão da dolorosa comédia humana, ou estivemos nele pouco tempo. E com o fuck de Hong Chau e Matt Damon entramos mesmo no território do espectáculo global.

Um espectáculo "global"

Downsizing sai do Nebraska e vem parar à Noruega. A tristeza acabrunhada dá lugar à grandiloquência do apocalipse. É isso que o preocupa, o fim do mundo? Também parece que não. Cada vez mais Downsizing se deixa levar pelo design de um mecanismo e se aproxima, por exemplo, de The Truman Show (Peter Weir, 1998). Não é certo, é mesmo questão de desfoque no filme, o que é que Payne e Taylor pensam sobre as “questões” que trouxeram para o seu argumento, as económicas, as ambientais, as políticas. Tendo passado uma década com o projecto nas mãos, talvez Downsizing se tenha transformado num receptáculo temático, e com o tempo os temas que o encheram foram perdendo a veemência e a espontaneidade, o recorte (porque se calhar alguém deixou de acreditar na sua urgência). Mas ganharam em possibilidades de receita espectacular. Passaram a ser um “gimmick”. Esta quarta-feira, no Festival de Veneza, enquanto Hong Chau atraía as atenções na conferência de imprensa, roubando descaradamente o spotlight que à partida se diria naturalmente direccionado para a estrela Matt Damon (como se lhe dissesse “agora sou eu, Matt”), Payne e Taylor nao se descosiam, de forma alguma, sobre os “temas” do filme. O realizador dava mesmo respostas assumidamente “pouco claras”, e irritantemente pouco claras, para rimar com as perguntas sobre a posição “pouco clara” – pessimista ou optimista?, alguém quis saber… – do filme. Parecia Cristoph Waltz a desistir do pensamento em favor do espectáculo. Mas o realizador e o argumentista deixaram ver muito bem que foi o “global” que lhes interessou: chegar a todo o mundo, a todos os espectadores (“mesmo aqueles que votaram Trump?”, alguém provocou), como se as diferentes nacionalidades das personagens e os diferentes locais da acção fossem, então, uma estratégia.

À medida que cresce em escala, Downsizing torna-se um filme mais pequeno. E temos para nós que acaba mesmo algo diminuído. Estão aqui os tons do cineasta de Eleição (1999) ou de As Confissões de Schmidt (2002), mas sem a matéria humana provocar os danos que provocavam esses filmes, sobretudo o primeiro. O apocalipse também vai à vida em Downsizing. É uma questão de pôr-do-sol. A história de amor é definitivamente mais global – pois, o filme é uma história de amor, Payne e o seu co-argumentista estão “mais interessados no humanismo do que na política”. A palavra por estes dias no Lido é Óscares. Aconteceu assim em anteriores aberturas, os anos de La La Land (Damien Chazelle, 2016), de Birdman (Alejandro González Iñárritu, 2014) ou de Gravidade (Alfonso Cuarón, 2013). São estes os “argumentos” que Veneza está a conseguir utilizar.

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