Ouve música indigesta? Pare e tome Chá de Boldo

Com catorze elementos e quatro discos gravados, o último dos quais recém-lançado, a brasileira Trupe Chá de Boldo soa com a frescura de uns Mutantes do século XXI

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Se não ouviram falar neste nome, fixem-no: Trupe Chá de Boldo. Na música que se faz actualmente no Brasil, eles distinguem-se pela clareza e pelo arrojo. Têm onze anos de existência (em São Paulo), quatro discos gravados e são catorze elementos que, entre eles, fazem tudo: tocam, cantam, gravam, fotografam, desenham, produzem, promovem. Outra coisa: não têm líder e gabam-se da sua existência democrática, em que, havendo querelas irresolúveis por discussão, se vai a votos. “Começou como uma reunião de amigos, sem ideia de fazer um projecto profissional de música. Era um grupo que saiu do colégio, do ensino médio, aos 14 anos.” Quem o diz é Marcos Ferraz, saxofonista e também assessor de imprensa do grupo, actualmente a viver em Lisboa.

Marcos tem 31 anos e os restantes membros da Trupe também andam na casa dos trinta. São eles, por ordem alfabética: Ciça Góes, Cuca Ferreira, Felipe Botelho, Filipe Nader, Gustavo Cabelo, Gustavo Galo, Guto Nogueira, Julia Valiengo, Leila Pereira, Marcos Ferraz, Pedro Gongom, Rafael Werblowsky, Remi Chatain e Tomás Bastos. No currículo têm quatro discos: Bárbaro (2010), Nave Manha (2012), Presente (2015) e Verso (2017), este recém-lançado. E têm além disso participação em dois discos de Tom Zé, Tribunal do Feicebuqui (2013) e Vira Lata na Via Láctea (2014). “Três músicas com arranjo nosso, gravação nossa, ele só botou a voz. Foi muito especial p’ra gente.”

Um som distintivo

No início contava sobretudo a diversão. “A gente fazia um som, compunha uma música, brincava, mas tocava super mal. Até que veio a ideia de fazer uma banda. Os amigos começaram a gostar, marcámos um showzinho aqui, outro ali, veio um monte de gente, gostou. Era uma mistura de músicas autorais com Caetano, Chico Buarque, Itamar Assunção… Virou um acontecimento, o show da Trupe era uma festa. E aí a coisa foi ficando mais séria.” Até que o Studio SP, conhecida casa de espectáculos de São Paulo, os chamou. Eles disseram “Nossa Senhora!” (um projecto “tão amador” num lugar tão profissional) mas seguiram adiante. Foram, tocaram, e vieram novos convites. “De repente a gente percebeu que não era mais uma brincadeira. Era também um grupo de amigos, claro, nunca deixou de o ser até hoje, mas começou a ser coisa profissional, com um projecto, uma cara. Todo o mundo começou a estudar mais música, o que trouxe uma evolução técnica e musical, e aí a gente gravou o primeiro CD, Bárbaro.”

Esse disco, que tal como todos os outros está no site da banda para download gratuito, era ainda algo incipiente. “É um disco um pouco irregular. Não que seja ruim, mas tem músicas lá do comecinho com outras feitas um mês antes, já muito diferentes. Uma marchinha de carnaval e um rock. Mas a gente sempre foi um pouco ecléctico.” Há dois vídeo deste disco no Youtube, Pirata e Bárbaro, que permitem perceber o seu clima.

Dois anos depois, surgiu o segundo, Nave Manha, com produção de Gustavo Ruiz e bem mais robusto. Teve também dois vídeos, Belém Berlim e Na garrafa, e este último teve impacto na MTV. O terceiro, Presente, também produzido por Gustavo Ruiz, é o mais sólido dos três e o mais representativo da sonoridade do grupo, que tanto remete para os sons-surpresa de uns Mutantes actualizados para o século XXI, como para as experiências colectivas dos Novos Baianos, dos PLAP ou até da Orquestra Imperial, mas com um som distintivo e aberto à imaginação, ainda que ecléctico e híbrido.

"Com a nossa cara"

O quarto disco, Verso, alterou duas coisas fundamentais: a produção é do grupo e as canções, pelo contrário, são todas alheias. “A gente fez dez anos e percebeu que, além de já ser uma banda gigantesca, sempre tínhamos convidado gente de fora para participar de discos, de shows. E tivemos a ideia de fazer um disco só com músicas de outras pessoas com quem a gente conviveu. Mas sempre relendo do zero, não há nenhum arranjo parecido com o original.” Os arranjos são sempre colectivos, sublinha Marcos. Neste disco também. “A gente não queria fazer covers, não faria o menor sentido, mas versões com a nossa cara. Por isso este é um disco que a gente sente tão nosso quanto os outros.” Os temas são de Alzira E, André Abujamra, arrudA, Gero Camilo, Iara Rennó, Juliano Gauche, Léo Cavalcanti, Marcelo Segreto, Negro Léo, Pélico, Peri Pane, Tatá Aeroplano e Tata Fernandes. Mostraram depois a cada um dos autores as canções gravadas e fizeram um vídeo com as reacções, que vão do gozo ao espanto. “Dois minutos só com as caras deles ouvindo pela primeira vez as músicas.”

Tendo cada um dos membros da Trupe ocupações diversas, elas são o complemento ao que ganham com a música. “Ninguém vive só da Trupe, não tem como pagar as contas só com isso. Mas, surpreendentemente, ajuda bastante. A gente fez, por exemplo, uma tournée com o SESC, no começo do ano. Nove shows num mês, dois meses de salário para cada um. Depois vem um show numa casa pequena, onde não se ganha nada, mas há outros de cachet muito bom. É variado. Da venda digital, ou de discos, sempre entra um pouco. Eles estão para download gratuito, mas há sempre quem compre.”

Com Presente a ser relançado agora em vinil e Verso em digressão por vários palcos, a Trupe atravessa um bom momento. Como se entendem? Marcos explica: “São catorze pessoas [eram treze] que funcionam numa relação horizontal, democrática, em que ninguém manda. E dura há já onze anos! A gente mesmo se pergunta: como? Porque tem briga, a gente num dia quer se matar e no outro se abraça.” Mas não é assim a vida?

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