Dinheiro, direitos e fronteiras: o "Brexit" não sai desta conversa

A pressão aperta para haver progressos que até aqui não apareceram. Bruxelas espera que Londres clarifique a sua posição mas está a ficar impaciente. Governo britânico pede flexibilidade.

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Mural de Banksy em Dover, na Inglaterra EPA

A União Europeia e o Reino Unido iniciam esta segunda-feira a terceira ronda das negociações bilaterais para o “Brexit”, e as expectativas de progressos continuam a ser reduzidas. Depois das críticas sobre a sua ambiguidade nas reuniões anteriores, Londres produziu e divulgou uma série de position papers (11, no total) para esclarecer a sua postura negocial e as soluções que defende em matérias como a fronteira da Irlanda do Norte, o Tribunal de Justiça Europeu e a futura relação comercial entre os dois blocos.

Mas o esforço para alargar a discussão não lhe valeu grandes aplausos: Bruxelas lembrou que, segundo o calendário estabelecido, as negociações só arrancam depois de estarem definidas as condições para a separação. Ou seja, como em todos os divórcios, os dois lados primeiro têm de concordar em dividir os bens e acertar as contas antes de decidir em que termos se vão relacionar no futuro. Entenda o que se vai passar esta semana em Bruxelas.

À terceira é de vez?

Para o sucesso desta terceira ronda negocial, será fundamental desanuviar a tensão e ultrapassar as desconfianças que se avolumaram entre as equipas de ambos os lados após as primeiras sessões de trabalho. Nos últimos dias, vários diplomatas e funcionários europeus mencionaram a frustração sentida em Bruxelas nas rondas passadas, e apontaram o dedo à “impreparação” de Londres que impediu que se avançasse nas questões “substantivas” – que, nesta fase, insistem, têm a ver com a definição dos direitos dos cidadãos (os europeus que residem no Reino Unido e os britânicos que vivem no continente) e das obrigações financeiras de Londres.

Desta vez, o ministro britânico para o “Brexit”, David Davis, chega à Bélgica com posições definidas em várias matérias; o problema é que o caderno de encargos apresentado por Londres não coincide exactamente com a visão que Bruxelas tem do “Brexit”. Para os europeus, a votação britânica não foi para obter um “tratamento especial” dentro da União Europeia, mas sim para sair do bloco.

À terceira, ou vai ou racha, dramatizam as fontes do lado europeu, avisando que se não houver progressos até quinta-feira, todos os prazos do processo ficarão irremediavelmente comprometidos. Os britânicos queixam-se da intransigência dos seus interlocutores e insistem que ambos os lados têm de ser “flexíveis” e estar disponíveis para “aceitar compromissos em questões sobre as quais discordam”.

O risco, para os dois blocos, é chegar a Março de 2019 sem ter assinado um novo tratado abrangente que substitua a complexa relação jurídica e económica construída em 44 anos de união – o “Brexit” mais duro possível, com o corte total entre o Reino Unido e a União Europeia.

“As expectativas são baixas. Os documentos publicados pelo Reino Unido têm mais a ver com a relação futura, que não faz parte da discussão actual, do que com as matérias que têm de ser resolvidas primeiro, como por exemplo a questão financeira. Ainda não sabemos exactamente qual é a posição [britânica] nessas matérias, pelo que é improvável que haja ‘progressos significativos’ para cumprir o prazo de Outubro”, dizia à Reuters uma fonte envolvida no progresso.

“Show me the money”

De acordo com o calendário, o negociador-chefe da Comissão Europeia, Michel Barnier, apresenta o seu primeiro relatório na cimeira de 19 e 20 de Outubro. O processo avançaria, então, para a segunda fase, mais complexa, de discussão da futura relação bilateral, nomeadamente em termos comerciais. Londres gostaria de começar a negociar o mais cedo possível o seu acesso ao mercado comum de 500 milhões de consumidores.

Mas Barnier já avisou os 27 que ainda não conseguiu que Londres se comprometesse com o valor da compensação financeira pelo “Brexit” – as estimativas apontam para uma factura que pode variar entre os 60 mil milhões e os 100 mil milhões de euros. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, já corrigiu o seu tom exaltado, e depois de ter sugerido que Bruxelas bem podia esperar sentada se pensava que ia “extorquir” dinheiro ao Reino Unido, garantiu que Londres cumpriria todas as suas obrigações, “mas não pagaria um cêntimo a mais ou a menos”.

Os europeus estão à espera que Londres apareça nesta terceira ronda negocial preparada para apresentar a sua própria fórmula de cálculo do montante a pagar pela separação – ou então a aceitar a metodologia de Bruxelas, que prevê o pagamento da parcela britânica do actual quadro comunitário (até 2020), dos projectos de desenvolvimento com financiamento já aprovado e ainda dos descontos para o sistema de pensões dos funcionários britânicos da UE.

Trocar a imaginação pela realidade

Se os direitos e os dinheiros são matérias sensíveis do ponto de vista da gestão política, a outra questão que integra as discussão prioritárias deveria ser simples de resolver. Mas os europeus não ficaram convencidos com as ideias apresentadas pelo Governo britânico para a gestão da fronteira da Irlanda do Norte: uma “fronteira invisível” com um regime facilitado para a passagem de mercadorias, que um responsável europeu descreveu como “pensamento mágico”. “A solução proposta por Londres para a fronteira e alfândega da Irlanda do Norte parece um conto de fadas”, considerou outro diplomata, citado pelo Politico.

Ligada à regulação dos movimentos na fronteira, tanto em termos de comércio como de segurança, está outro ponto sensível e onde para já não há consenso: a arbitragem e cooperação jurídica entre os dois blocos. Um dos argumentos mais usados durante a campanha do referendo para o “Brexit” foi o de que a saída permitiria a Londres recuperar o controlo sobre as decisões que são tomadas em Bruxelas, o que implicava entre outras coisas libertar-se da jurisdição dos tribunais europeus.

Pragmatismo sob pressão

Não é só a impaciência de Bruxelas que está a tornar a missão negocial de David Davis cada vez mais complicada: a indefinição sobre a forma como se vai desenrolar o “Brexit” já está a penalizar a economia britânica. A incerteza levou a uma retracção do investimento das empresas e famílias, com reflexos na produtividade e na balança comercial britânica. A libra tem sido uma das vítimas da falta de confiança, tendo perdido 1,4% contra o dólar e o euro desde meados de Agosto.

Além disso, a oposição do Labour elevou a pressão tanto em Downing Street como em Westminster. Os trabalhistas, fortalecidos pelo resultado das legislativas antecipadas pela primeira-ministra Theresa May no início de Junho, apresentaram as suas propostas para um chamado “soft ‘Brexit’”, que passa separação de Londres da união política mas pela sua permanência no bloco económico, nas actuais condições de funcionamento do mercado comum.

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