Quando Rio Maior quis rachar a cabeça dos comunistas à mocada

No livro Quando Portugal Ardeu, de Miguel Carvalho, há histórias do Verão Quente em Portugal. Uma obra sobre o "lado b" da revolução.

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O histórico líder, Álvaro Cunhal, só voltaria a pisar Rio Maior em Outubro de 1993, para inaugurar a sede do partido Carlos Lopes / Arquivo
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Fotografia que Einar Braathen tirou à sede do PCP em Braga e que está publicada no livro "Quando Portugal Ardeu", de Miguel Carvalho EINAR BRAATHEN
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Fotografia que Einar Braathen tirou à sede do PCP em Braga e que está publicada no livro "Quando Portugal Ardeu", de Miguel Carvalho EINAR BRAATHEN
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Fotografia que Einar Braathen tirou à sede do PCP em Braga e que está publicada no livro "Quando Portugal Ardeu", de Miguel Carvalho EINAR BRAATHEN

Até 1985, a data foi celebrada com um feriado municipal: 13 de Julho de 1975. O lugar da acção? Rio Maior, simbolicamente a meio de Portugal, nessa altura tão polarizado entre a Esquerda e a Direita. A marcar uma fronteira entre o minifúndio do Norte o latifúndio do Sul. Ali, e antes que os comunistas viessem roubar as terras, como se dizia, havia de dar-se cabo deles, nem que fosse à mocada. Não era só uma expressão: as mocas existiram e ainda são vendidas na cidade como símbolo da contra-Revolução.

Esta é apenas uma das histórias do Verão Quente em Portugal, contadas por Miguel Carvalho, no livro Quando Portugal Ardeu, editado pela Oficina do Livro – é uma das que já foram publicadas na imprensa, o jornalista escreve na Visão, mas a esmagadora maioria das linhas da obra são novas. Miguel Carvalho juntou testemunhos, recuperou relatos e divulgou documentos inéditos para contar o outro lado da Revolução. Para além de reconstruir o ambiente daqueles dias, quis responder a questões como: quem protegia e que segredos escondia a rede bombista de extrema-direita? Que organizações conspiraram contra a Revolução? Como é que a Igreja abençoou a luta contra o comunismo?

O “clique” para Miguel Carvalho escrever o livro aconteceu durante a fase de negociações para os acordos que permitiram a formação do actual Governo – um Executivo PS apoiado no Parlamento pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda). Nessa altura, o jornalista espantou-se com os temores sobre o que aí viria, como se a “ditadura do proletariado” estivesse a caminho. E percebeu que era preciso contrariar a narrativa oficial do Verão Quente, contar o “lado b” do chamado PREC.

Miguel Carvalho quis contribuir para “alargar o olhar das pessoas”, mostrar que aquela fase não é a preto-e-branco, tem zonas cinzentas. Apaixonado por aquele período da História, a recolher testemunhos e papelada há 20 anos, não esconde que a Esquerda cometeu excessos à época, mas não esteve sozinha. A Direita também teve protagonistas. Algumas pessoas que viveram aquela época, e com quem o jornalista se tem cruzado nas apresentações que faz do livro pelo país, acrescentam mais memórias. Outros, mais novos, nunca tinham ouvido falar do termo “rede bombista de extrema-direita”, que praticou centenas de acções violentas entre Maio de 1975 e Abril de 1977, alguns dos quais acabaram em mortes.

Em São Martinho do Campo, estiveram mais de 100 pessoas na apresentação de Quando Portugal Ardeu. Foi num descampado, onde outrora era a casa da família de Rosinda Teixeira, vítima de um atentado da rede bombista de extrema-direita, apenas um dos que aconteceram já depois do 25 de Novembro. Agora está lá escrito numa placa: “Em memória de Rosinda Teixeira, vítima de um atentado à bomba neste local em 21 de Maio de 1976.”

Mas vamos ao episódio em Rio Maior, cidade onde se perseguiram comunistas, usando cocktails Molotov feitos com garrafas de conhaque e, entre outros artefactos, recorrendo… a mocas. “Nesse Verão, interesses e descontentamentos organizaram-se. A Direita deu a mão. Uma serração deu o pau. Tudo ‘para rachar a cabeça aos comunistas’. Ideia de ‘Abílio das Mocas’ depois de o negócio se tornar florescente. Os que entravam na ‘caça’ levavam as mocas sem verniz, para o combate. As outras, adornadas com pregos dourados, eram para turistas. ‘Em Rio Maior, muita gente andava armada. O Abílio, como não tinha licença de porte de arma, fez a moca’, explicará João Fróis. A moca pegou. (…) A moca varreu o concelho à cata de ‘comunas’”, descreve Miguel Carvalho.

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Fotografia que o norueguês Einar Braathen tirou à sede do PCP em Braga e que está publicada no livro "Quando Portugal Ardeu", de Miguel Carvalho EINAR BRAATHEN

Na tarde de 13 de Julho de 1975, em Rio Maior, eram esperados militantes comunistas para uma reunião no Grémio da Lavoura. Acontece que começou a correr o boato de que o PCP iria ocupar o organismo corporativo. “’Fomos de aldeia em aldeia, de porta em porta, mobilizar o povo contra os comunistas’”, recordou ao jornalista Joaquim Nazaré Gomes, fundador da associação que viria a ser a Confederação dos Agricultores de Portugal”. Nos dias que se seguiram, os vespertinos de Lisboa foram queimados – a imprensa acusava a região de ser um “quintal de caciques” e “albergue de ‘pides’”.

Petardos, paus e forquilhas

Estava aberta a guerra (que se entendeu a outros pontos do país) aos comunistas. Uma guerra feita de paus, forquilhas e foices. Em Rio Maior, as sedes do PCP e da Frente Socialista Popular “foram esventradas e o recheio queimado”. A cidade não tinha este historial (em 1958, Humberto Delgado venceu em Rio Maior, celebrou-se o 25 de Abril de 1974…), mas “a ocupação da Herdade da Torre Bela, no Ribatejo, em Abril de 1975, instigada pela LUAR e pela UDP”, assustou os proprietários agrícolas.

No Largo da República, uma faixa avisava os comunistas para abandonarem a cidade. “Os petardos sucediam-se. ‘A população estava louca. Carregada de ódio e extremismo. Foram semanas sem dormir sossegado um único dia’”, contou ao repórter o socialista Nuno Carvalho. O texto inclui ainda relatos de quem tenta desvalorizar o que aconteceu: “’Estivemos mobilizados, sim, mas era mais brincadeira do que outra coisa. Houve gajos que se exaltaram com as mocadas, mas ninguém morreu’, diz Nazaré Gomes”.

Os efeitos na vida de alguns comunistas foram, porém, visíveis: houve quem abandonasse a terra; outros anunciaram no jornal: “Eu, José Frazão Simões, vulgarmente conhecido por José da Moda, residente em Rio Maior, venho por este meio desmentir o boato posto a circular nesta vila de que sou filiado do Partido Comunista.’” O histórico líder, Álvaro Cunhal, só voltaria a pisar Rio Maior em Outubro de 1993, para inaugurar a sede do partido.

Ali, nos meses anteriores ao 25 de Novembro, houve estradas cortadas, perseguições... “Em 1975, Rio Maior acreditou que Lisboa era Moscovo e cortou o país a meio. Começara ali a vaga de violência do Verão Quente com assaltos, mocas e barricadas. Foi a maior acção civil contrária ao perfil da Revolução”, escreve Miguel Carvalho. Num outro capítulo, outra história desse Verão Quente, em Braga: “Eram as cinco em ponto da tarde de 10 de Agosto de 1975. Debaixo de um sol escaldante, camponeses e trabalhadores rurais pobres, em fatos de domingo, engrossam o caudal de milhares de manifestantes.” Queriam restituir a Rádio Renascença ao Patriarcado de Lisboa e à Igreja.

Só que, no dispersar da concentração, “uns poucos milhares” foram até à praça onde fica a sede do PCP. Há descrições de pedras a serem atiradas contra o espaço dos comunistas que, por sua vez, pediam por megafone para as pessoas dispersarem, caso contrário responderiam com tiros de caçadeira. Segue-se a tentativa de arrombar a porta, ouvem-se disparos, há feridos, a placa da sede é destruída, a bandeira do PCP rasgada e queimada, garrafas com gasolina lançadas, chamas no edifício… Quem registou tudo em fotografia foi Einar Braathen, que viajou da Noruega até Portugal e acabaria por ser atingido por disparos vindos da varanda. As memórias que guardou estão na obra de Miguel Carvalho.

E no livro ainda se recuperam verões com datas misteriosas. Como 21 de Agosto de 1979. Eram 8h15 quando Joaquim Ferreira Torres foi morto. Na reportagem, que lhe valeu o Prémio Gazeta, o jornalista conta-nos: “Naquela manhã, Joaquim Ferreira Torres levantou-se mais tarde do que o habitual. Normalmente estaria a pé às seis horas. Mas o jantar da véspera terminara para lá da meia-noite e ele havia passado uma madrugada incómoda, com dores na coluna.”

Miguel Carvalho descreve o que aconteceu, recorrendo a todos os pormenores narrativos até Ferreira Torres se meter no seu Porsche 911 T vermelho, onde seria morto com tiros. Quando o crime aconteceu, “aguardava, em liberdade condicional, a repetição do julgamento da rede bombista de extrema-direita. Garantira que dessa vez se sentaria no tribunal e ‘abriria o saco’ sobre os segredos e as cumplicidades desses tempos.” O ex-autarca de Marco de Canavezes Avelino Ferreira Torres haveria de dizer mais tarde que o irmão – suspeito de financiar estes movimentos de extrema-direita – foi morto por saber demais sobre o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal, de extrema-direita). Mas muitos anos de investigação depois, o crime prescreveu e o mistério nunca se desvendou.

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