Freitas, Soares... e Markl — 1986, o ano em que se viveu perigosamente

Em 1986, as presidenciais mais concorridas de sempre dividiram o país e dois adolescentes de Benfica. A nova série de comédia da RTP1 vai ao Frágil, à Juke Box e ao videoclube.

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Adriano Carvalho e Gustavo Vargas RUI GAUDÊNCIO
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Henrique Oliveira e Gustavo Vargas RUI GAUDÊNCIO
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Filipe Homem Fonseca, Joana Stichini Vilela e Nuno Markl RUI GAUDÊNCIO
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Um dos cenários da série RUI GAUDÊNCIO
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O realizador Henrique Oliveira RUI GAUDÊNCIO
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Miguel Moura e Silva RUI GAUDÊNCIO

A cabeça de Nuno Markl é um lugar, tão espaçoso como o videoclube de três paredes que espreitamos por entre capas de cassetes e um mundo de referências da década do sonho do progresso e do pesadelo dos chumaços. A parede que falta é a que nos permite ver a cena de 1986 que ali se filma, e que ainda antes do final do ano chegará à RTP. Uma série de adolescentes e uma comédia, John Hughes, Os Goonies, Duarte e Companhia e o Frágil ancorados firmemente naquele momento em que o país parecia fender-se em dois: “Prá Frente Portugal” com Freitas do Amaral ou “Soares é Fixe”? As presidenciais mais concorridas de sempre, góticos, metaleiros e nerds numa “mistura entre o lado realista e o lado de fantasia oitentista”.

A frase vem da tal cabeça de Nuno Markl, topografia usada pelo co-argumentista Filipe Homem Fonseca ou pelo director de programas da RTP1, Daniel Deusdado, para localizar de onde vem e onde se passa 1986. É a nova série criada pelo one man show que é o autor de Caderneta de Cromos (rubrica de rádio e livro), Refrigerantes e Canções de Amor (filme), sketches históricos de Herman José (televisão) e que também é voz de filmes (em A História de Uma Abelha dobra Jerry Seinfeld), jurado de Operação Triunfo ou aquele a quem se recorre quando há que falar de coisas tão díspares como Twin Peaks ou os bonecos PinyPon. One man media, também ele, que há semanas enche os seus feeds das redes sociais com imagens de filmes de John Hughes, cozinhas de azulejos e fórmica da autoria do director de arte e cenógrafo Hugo de Almeida, galochas Colibri para calçar os miúdos e boletins de voto da única eleição presidencial que em Portugal foi à segunda volta.

Neste dia ventoso de Agosto filma-se uma cena no videoclube Video Magic. Não em Benfica, centro nevrálgico da vida de Tiago, uma espécie de alter-ego de 15 anos de Markl interpretado por Miguel Moura e Silva, mas sim em Loures. No estúdio da Cinemate, as três paredes azuis do Video Magic estão de costas voltadas para um escritório de paredes vermelhas e telefone preto de rodela e nas imediações de um quarto dolorosamente anos 1980, cheio de madeiras lacadas e frisos dourados. É entre estes cenários e outros bem reais, como a Escola José Gomes Ferreira ou o antigo cinema Turim, que se passam histórias de amizades, tribos e famílias, mas também uma história de amor entre miúdos divididos como o país – Capuletos e Montéquios, ele de uma família como a de Nuno Markl, com um pai comunista que “engoliu o sapo o votou Soares”, ela de uma família como a da “consultora-autora” Joana Stichini Vilela, que votou Freitas. A ideia era antiga e era para uma curta ou uma longa-metragem chamada Videoclube. Foi ganhando camadas até se transformar em 13 episódios de uma hora e 650 páginas de argumento que escreveram Nuno, a irmã Ana Markl, Filipe Homem Fonseca, com contribuições de Stichini Vilela.

A série inclui “experiências muito concretas de todos nós” e o prisma Fevereiro de 1986, que “alimenta o drama e a comédia das personagens”. Rodeados de casacos de malha tão felpudos quanto berrantes ou de t-shirts de Iron Maiden, Markl e Filipe Homem Fonseca falam, como os argumentistas tendem a fazer, apaixonadamente das personagens. O sentido de propriedade parece ir um pouco mais além, porque estas vieram não só da imaginação mas da biografia – e o peso da primeira pessoa quando ela é adolescente é titânico. Joana Stichini Vilela fez seis anos entre a primeira e a segunda volta, mas Filipe tinha 11 anos e Nuno já 15 anos.

Na sala dos figurinos cheira levemente a loja de roupa em segunda mão. “Dentro do que foi este período de 1986 na cabeça do Markl”, explica Homem Fonseca, “nós fomos para lá e trouxemos bagagem. E ele disse ‘ponham-se à vontade’”, sorri. “Aí começam a aparecer particularidades de algumas personagens – eu era muito mais o [metaleiro] Sérgio, o Markl era muito mais o Tiago – e isso faz com que elas ganhem vida." 1986 é “um mutantezinho”, diz o argumentista, músico e autor de outra série da nova leva da RTP, Aqui tão Longe, “um filho do Markl com umas moléculas enxertadas de cada um de nós”.

Coleccionadores de memórias

Os autores vinham entusiasmados para ver a cena que se filma no Video Magic, cujas prateleiras têm espaço para obsessões conhecidas de Markl como a saga Star Wars. Está-se a meio dos dois meses de gravações com actores como Gustavo Vargas, Adriano Carvalho, Laura Dutra, Eva Fisahn ou Mafalda Santos. O realizador é Henrique Oliveira, também conhecido como guitarrista dessa banda-marco dos anos 1980 portugueses chamada Táxi. “A melhor maneira de resumir isto é como se o John Hughes tivesse feito um filme sobre as presidenciais de 1986 – Pretty in Pink nas presidenciais de 1986”, ri Markl. Uma referência ao Jornal do Incrível motiva onomatopeias de entusiasmo e reconhecimento na sala.

A série é de época, de liceu, de comédia e de autores que são coleccionadores de memórias. Uma proposta de Markl à RTP, “é o universo dele”, diz Deusdado. “1986 interpela a ironia da história, para os pequenos pormenores, para a cabeça do Nuno Markl” – lá está ela outra vez. “Portugal tinha acabado de entrar na Comunidade Europeia, há aquele boom de crescimento dos primeiros quatro anos de fundos comunitários e de repente tínhamos auto-estradas, saneamento, hipermercados”, recorda o programador. A falta de atenção da juventude à política não era um problema, a abstenção muito menos e “a convulsão dos anos 1970 ainda estava muito presente”, lembra Stichini Vilela, autora de LX80, que forneceu à série tanta documentação detalhada que os autores sabem mais hoje sobre essa época do que na altura em que a estavam a viver, brinca Filipe Homem Fonseca. Ela andou a perguntar que nomes se chamavam àqueles de quem não gostávamos quando éramos miúdo nos anos 1980, mergulhou na Hemeroteca, policiou os guiões.

O terreno, como certas cabeças, é fértil. O resultado final chega entre o fim de Novembro e início de Dezembro, e só aí se saberá se 1986 será um fenómeno como Conta-me Como Foi (sobre os anos 1960), que deu origem a E Depois do Adeus (pós-25 de Abril) e até à experiência Os Filhos do Rock (anos 1980). Ana Bola opinou a Nuno Markl que há potencial para mais temporadas, “tipo Morangos com Açúcar”, riem-se na sala. A conversa que pode gerar uma série sobre uma época tão ruminada quanto recordada pode ser a “dois níveis, um de nostalgia pura; outro é perceber como o país mudou”, diz Joana Stichini Vilela. “É uma boa série que permite ver a aceleração da História”, responde ao PÚBLICO Daniel Deusdado sobre o papel que 1986 tem na grelha após séries históricas de outro tom como Madre Paula ou Vidago Palace. “Estamos à procura de contar a nossa História contemporânea”, diz, “e de deixar para o futuro” produtos “com os actores contemporâneos e das cabeças que vivem nos nossos dias sobre o que foi Portugal, e o que é Portugal”. 

Mas se “a história é uma fábula sobre a qual todos chegámos a um consenso”, ideia atribuída a Napoleão Bonaparte que Filipe Homem Fonseca traz à conversa, “o passado é muito individual": "Há pessoas que têm recordações tão específicas daquele período que as tornam a norma”, reflecte o argumentista. E essas memórias “também são muito contaminadas pela cultura pop”, atenta Joana Stichini Vilela. 1986 vai pôr no horário das 21h da RTP1, quando terminar Sim, Chef, mais uma entrada de retromania na cultura. Sendo os anos 1980 propensos à caricatura, os autores querem evitá-la ou abraçá-la? 

Antes deles, o responsável pelos figurinos, Manuel Damião, e Elisabete Guerreiro, assistente figurinista, movimentam-se entre os charriots carregados de roupa do Inverno de algum descontentamento fashion que foram os anos 80. São alugadas e dividem-se entre as roupas de liceu, a dos adultos e as de “algumas saídas nocturnas ao Bairro Alto dos anos 1980 e a sítios mais icónicos [de Lisboa] como o Frágil, o Trumps e a Juke Box”, diz Damião. “Tentámos seguir ao máximo não só o que existia, mas o que se viveu.”

Há vários produtos a emular os anos 1980 no cinema, na televisão e na literatura actual – um dos autores que se interessou pela década, Ernest Cline, cujo livro Ready Player One é o próximo filme de Steven Spielberg, defende que isso acontece porque é agora que os que foram jovens na época estão em posição de escrever sobre ela. A nostalgia é forte neles e sim, “escrevemos sobre aquilo que conhecemos”, reconhece Joana Stichini Vilela. Mas também acha que “vivemos tempos de crise, e se nos anos 1960 e 70 se olhava muito para o futuro” de forma optimista, “hoje há muito a nostalgia de que o passado é que foi” bom.

Mesmo com entradas no universo de séries como Duarte e Companhia, um sonho de miúdo do autor, datado do tempo em que havia só dois canais de televisão, o passado não era assim tão radioso. Faltavam bens, a inflação era galopante, ainda havia muito sonho por cumprir. “As pessoas esquecem-se de que também havia chatices nos anos 1980. Por alguma razão filtrámos isso e ficou a parte colorida”, admite Nuno Markl, especialista na sua própria adolescência e na cultura popular dos seus anos 1980. Trabalharam com os actores para construir pessoas, e não bonecos de cera num museu. “É muito fácil nos anos 1980 entrares na caricatura porque a própria época era uma caricatura de si mesma.” A série é-lhe “uma coisa que vem tão de dentro”, sorri. “Esse equilíbrio é tramado quando se fala dos anos 1980, está-se sempre à beirinha do precipício.”

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