Requiem à Saúde Mental em Portugal? Coda

O nosso sistema de saúde mental é satisfatório? Duvido. O momento do “Aleluia” está longe — de resto, não sou de prestar culto a sistemas.

Somos um país em que é difícil assumir a discordância. Discordâncias normais são rapidamente apelidadas de “crispações”. Ao que parece, porém, também a concordância enfrenta, entre nós, um problema de expressão. Não fora ele e escusar-me-ia a entediar o leitor com uma resposta a uma resposta a um artigo meu. Respeito de mais o leitor e o seu juízo para me alongar em iterações. Mas aqui vai.

Li com a exigida atenção a resposta, que desde já agradeço, do presidente do Conselho de Administração do Hospital Magalhães de Lemos ao meu artigo de 02.08.2017. Regozijo-me em ver um responsável pela saúde mental em Portugal alinhar-se, como eu, com as principais linhas de reforma do Plano de Saúde Mental 2007-2016 e lamentar, como eu também o fiz, o que desse plano continua a não existir na medida devida: proximidade; acessibilidade; intervenção de base atempada; acompanhamento ambulatório capaz; interligação e continuidade de tratamentos biológicos, psicológicos e mesmo sociais, dentro e fora do quadro institucional, que incluam profissionais e funcionalidades diferenciadas, em complemento ou alternativa — médicos-psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas, assistentes sociais, etc.

Onde há acordo geral, não quer dizer que haja acordo particular. Que o tempo possa ser terapêutico, não tenho qualquer dúvida. Faço das palavras do Dr. Leuschner Fernandes minhas. Mas insisto que nem todo o tempo o é. Há um tempo curativo, cicatrizante, reanimador. Há também um tempo que é exatamente o contrário. Convido o leitor a passar algumas horas nas salas de televisão ou corredores de um hospital psiquiátrico, como o Magalhães de Lemos, e acredito que virá no mínimo confuso sobre qual é qual.

Sem retirar tempo ao tempo que é de cada um — que é importante e também se faz de deambulação —, do que tenho a certeza é de que em internamentos 24/7 o tempo entre tomas de medicação é bem utilizado no desenvolvimento de uma relação empática entre psiquiatra e doente depressivo — que requer tempo, mais do que lhe é atualmente dado —, e nesse outro tempo limitado e estruturado de tratamento individual focado nas necessidades e problemas de cada um que é o tempo das psicoterapias cognitivo-comportamentais e mesmo interpessoais. Sem este outro tempo, o da psicoterapia, que não é oferecido a quem sofre de depressão em hospitais como o Magalhães de Lemos, insisto, perde-se tempo precioso para trabalhar as causas profundas por detrás dos sintomas neuropsiquiátricos que os fármacos atacam. E o que aí não se começa, raramente se começa fora: não há oferta no sistema público; sem comparticipação, ou com comparticipação limitada, fica demasiado caro no privado.

Diferenças de estilo à parte, da leitura da resposta fica uma dúvida: para quê alimentar uma falsa controvérsia, quando se concorda no essencial, que o nosso sistema de saúde mental continua desarticulado e desajustado de uma prática clínica moderna e integrada? Está melhor. Concordamos: mal seria. É satisfatório? Duvido. O momento do “Aleluia” está longe — de resto, não sou de prestar culto a sistemas.

Concentro-me assim rapidamente nas discordâncias elencadas. Algumas apontam para supostas inveracidades. Primeiro, o escrutínio do Plano. Em democracia, escrutínio existe verdadeiramente quando é público — isto é, quando chega aos cidadãos. Escrutínio técnico é importante, seguramente. Mas é apenas uma antecâmera: para falar de escrutínio com propriedade, é preciso que as avaliações da implementação cheguem efetivamente a público e sejam discutidas publicamente também pelas forças partidárias e sociais que o representam na sua diversidade (incluindo utentes, portanto). Nisto há ainda muito a fazer.

Quanto aos detalhes alegadamente “empolados”, “distorcidos” ou mesmo “imaginados” que me são atribuídos, duas coisas apenas há a dizer. Cui bono? Que teria a ganhar com a distorção? Tudo o que descrevi vi. E nessas muitas observações que fiz e conversas com utentes e profissionais que tive encontrei matéria de interesse público sobre a qual escrevi publicamente e que me parece desadequado remeter à discussão em contexto privado, que me é agora proposta, por muito aprazível que a conversa fosse, e sê-lo-ia certamente.

Encontro, de resto, uma certa contradição entre, por um lado, a descrição de um hospital esmagado por uma demanda excessiva e, por outro, um hospital a funcionar aparentemente sem nenhum dos problemas logísticos, funcionais ou clínicos por mim apontados. Por muita imaginação que se possa ter, há limites ao possível, e este parece-me ser um deles.

Ouvi efetivamente de um profissional do Magalhães de Lemos que este é “o melhor que o país — sistema público e privado — tem para oferecer”. A declaração desdobrou-se num misto de lealdade institucional e de lamento. Cumpre afinal aos profissionais de uma instituição defendê-la e defender os seus utentes em primeira linha. Tenho o maior respeito por isso. Mas essa defesa só é uma verdadeira defesa quando não é puramente defensiva. Não se mencione, por exemplo, a acreditação e certificação por uma agência como a britânica CHKS (cujos critérios não estão, aliás, isentos de controvérsia no próprio Reino Unido) no mesmo fôlego em que se destitui toda a crítica como efabulação.

Discordemos, mas discutamos o que está mal. Vejamos nisso uma vontade, que acredito comum, de imaginar, aqui sim, um hospital psiquiátrico — um sistema de saúde mental, aliás, porque disso se trata — mais capaz de recuperar utentes para a vida — e não um mero ataque. A interpelação foi feita por mim. A conversa voltou às páginas deste jornal. E bem assim. Que ela continue agora pela boca e mão de outros, que a saúde mental não é só “deles”: é também nossa.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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