Na ilha do Príncipe, como em muitas outras, já se ouve a orquestra do Titanic

As ilhas, com os seus frágeis ecossistemas, são os primeiros a enfrentar a onda devastadora que a humanidade provoca no planeta. Pobres, pressionados por todos os lados, há nestes povos quem resista. Quem se coloque entre as suas árvores e o caterpillar dos poderosos. E falam português.

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O povo da Ilha do Príncipe mantém no seu português adocicado de crioulo, o termo “leve-leve” que significa levar a vida com calma, sem pressas, nem atropelos. E foi com este modo de estar que a pequena comunidade recebeu, com um entusiasmo enraizado em muito saber feito, o IV Congresso Internacional de Educação Ambiental dos países de língua portuguesa, que decorreu na cidade de S. António entre 15 e 22 de Julho. Elogiada por acções que tardam nos países desenvolvidos, a população insistia em perguntar: "Vale a pena? Como nos defendemos daquilo que não provocamos?" 

A intervenção da comunidade na realização deste congresso foi muito além da deferência e da vontade de bem receber. Quis influenciar o conteúdo dos debates com a experiência e a autoridade que lhe advém do facto de ter sido classificada, em 2012, como Reserva Mundial da Biosfera da UNESCO.

António Abreu, director interino da Reserva da Biosfera da Ilha do Príncipe, recordou ao PÚBLICO, como a população, na altura, acolheu o projecto. “Foram calcorreados muitos quilómetros pelo interior da floresta” para explicar às pessoas o que se pretendia com a iniciativa que procurava salvaguardar a biodiversidade da ilha. “O dossier que chegou a Paris com a candidatura a reserva da biosfera tem folhas sujas de terra. As pessoas assinavam com a marca do dedo”, destaca este responsável.

Mas não se ficou por aqui a interiorização pela população das vantagens em ter a sua floresta salvaguardada, a mesma que lhe garantiu a sobrevivência nos anos de esquecimento a que foi votada após a independência do arquipélago.

A educação ambiental que passou a ser ministrada nas escolas da ilha e junto das comunidades dispersas deu os seus frutos. E, no passado mês de Junho, recebeu o Prémio Internacional ALOE, entregue pela Câmara do Comércio de Fuerteventura das ilhas Canárias, pelo sucesso do projecto Water&Recycle que permitiu, entre 2013 e 2014, recolher numa população com cerca de 7 mil habitantes mais de 500 mil garrafas de plástico que foram trocadas por cerca de cinco mil botijas de alumínio. Para além da recolha do lixo plástico, o projecto previa a instalação de máquinas que depuravam e refrescavam a água para, desta forma ajudar a combater os focos de malária e de outras doenças tropicais que florescem com a água não tratada.

Seguiu-se reciclagem das garrafas de vidro, que já alimenta a actividade de uma pequena cooperativa formada por mulheres que transformam o vidro em bijuterias de adorno. Paralelamente fazem a compostagem do lixo orgânico recolhido na ilha.

Os dois galardões acabariam por projectar o Príncipe como uma referência mundial na defesa da biodiversidade. E na abertura do congresso, José Cardoso Cassandra, presidente região autónoma do Príncipe, foi porta-voz das apreensões da sua população: “Como poderemos, ainda, edificar a esperança, junto das nossas comunidades, depois do esgotamento de algumas certezas que, nalguns casos, supunhamos intemporais e, até, tinham suporte cultural, aparentemente insubstituível, que suportavam a nossa velha ideia de progresso económico e social?”

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Mulheres a fazer compostagem através da mistura de ervas daninhas, lixo orgânico e casca de bananeira

A questão posta era, na sua essência, a ideia base que o congresso se propunha debater: “A Terra é uma Ilha. A Educação Ambiental como resposta às suas fragilidades e como contributo para viver nos seus limites”.

As ilhas como primeiras vítimas

O primeiro olhar de quem chega pela primeira vez à ilha do Príncipe, com a sua floresta quase intacta, não consegue identificar as ameaças que afectam os pequenos estados insulares, como viria a constatar-se nas exposições apresentadas no congresso.  

“Ansiamos que o congresso nos explique como fazer para podermos evitar a erosão e a carga poluente na nossa ilha” trazida pelas correntes oceânicas vindas do hemisfério norte, apelou José Cassandra, lembrando aos congressistas como as ilhas de todo o mundo “são um sistema frágil”.

Como governante, diz que está confrontado “todos os dias, com a redução drástica das areias nas praias”. Ao longo dos últimos 20 anos o mar entrou “entre 100 a 200 metros” nas zonas costeiras, obrigando a deslocar as comunidades que “habitavam no espaço agora preenchido pelo mar”, afirma.  

Este alerta seria reforçado com a preocupante observação de Adérito Santana, do Instituto Nacional de Meteorologia de S. Tomé e Príncipe, ao referir que a zona costeira do arquipélago “está a desaparecer por causa da erosão”.

Perante o que considera ser um facto indesmentível, sentencia: “Os países que, pela sua acção, contribuíram para a degradação ambiental têm de reagir e ajudar os países mais fragilizados no apoio para reforçar a sua resiliência às consequências do efeito de estufa”.

O acordo de Paris, que há partida se esperaria poder vir a corresponder às exigências que as alterações climáticas estão a colocar, é para Edgar Gaudiano, da Universidade Veracruzana, no México, “muito insuficiente”, alegando que “não foram apresentados prazos nem planos”, apesar de ter sido aprovado um fundo verde de 100 mil milhões de dólares.

Mais crítico e incisivo, Pablo Ángel Meira Cartea, da Universidade de Santiago de Compostela, na Galiza, não alimenta grandes expectativas em relação ao futuro quando se está “numa situação de pré-colapso e a maior parte das sociedades não tem consciência desse facto”. Afirmando não ter resposta para as consequências resultantes das alterações climáticas, o docente galego lembra que “nenhuma sociedade antecedente teve tanta informação sobre o seu colapso como a actual”. Mas, apesar do nível de conhecimento acumulado, as respostas “têm-se tornado irrelevantes e ineficazes”, comparando a atitude passiva das sociedades desenvolvidas à orquestra do Titanic.

A sequência dos depoimentos apresentados pelos representantes da CPLP evidenciaram uma desconfortante debilidade: “Não têm condições para proteger o ambiente”, resumia Luísa Schmidt, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

As linhas de reflexão e acção aprovadas no IV congresso expressam uma das componentes desta preocupação. “Os livros escolares e materiais didáticos continuam a apresentar distorções e ausências significativas sobre as alterações climáticas e a crise socio-ambiental global “.

De Cabo Verde a Moçambique, “foram vários os congressistas que focaram as consequências da subida do nível do mar”, refere a investigadora, frisando que “o impacto das alterações climáticas e as suas consequências sentem-se, em primeiro lugar, nos países mais pobres”.

Quando o Príncipe cerrou fileiras em defesa da sua floresta

Mas ao mesmo tempo “conforta” ver a maneira como as comunidades “defendem os seus ecossistemas. São impressionantes os exemplos retratados no congresso”, assinala Luísa Schmidt, sabendo-se como os governos, por vezes, “combinam com grandes empresas multinacionais” a instalação de culturas intensivas e a exploração de minérios. E dá o exemplo da plantação massiva de palmeira-de-dendé para a produção de óleo de palma destinado ao biodiesel, que “teve imensa implantação em África e no Brasil”. Mas como o petróleo baixou, “este tipo de cultura que necessitava de agroquímicos em excesso, poluía as águas e levava à deflorestação” foi sendo abandonada.

Em 2010, o povo da ilha do Príncipe lutou contra o acordo que o Governo de S. Tomé e Príncipe estabeleceu um empresa belga Agripalma, em 2009, para impedir a plantação de mil hectares de palmeiras que iria sacrificar igual área de floresta virgem, na roça Sundy.

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O Príncipe é Reserva da Biosfera da UNESCO

António Abreu assistiu ao desencadear dessa luta. A empresa Agripalma “queria plantar óleo de palma em grande parte da ilha” mas as comunidades que seriam afectadas pela nova monocultura “manifestavam-se todas as quintas-feiras contra a decisão do Governo” do arquipélago, luta que foi profusamente retratada pela edição do diário digital de São Tomé e Príncipe Téla Nón: “O Príncipe no seu todo, se bateu e evitou que os caterpilares entrassem pela sua floresta virgem, para matar árvores endémicas e de valor medicinal, que por sua vez sustentam as diversas espécies de aves endémicas". O Príncipe disse não ao projecto que poderia dizimar o seu rico património ecológico.  

Por causa da recusa das comunidades da ilha do Príncipe em ceder mais de 1000 hectares das suas terras, o Governo de então começou a procurar alternativa na ilha de São Tomé para dar resposta ao acordo assinado em 2009 entre o Estado e a Agripalma. E novamente o diário digital de S. Tomé e Príncipe relata os acontecimentos: “Então os caterpilares começaram a avançar sobre o manto verde que cobria a região sul da ilha de São Tomé. Árvores endémicas, que dão abrigo e alimento a aves também singulares, começaram a tombar ao ritmo do acelerador dos caterpilares. O manto verde que pintava o sul de São Tomé está a dar lugar a extensas áreas com aspecto de aeroporto sem fim. O governo decidiu que seria mais proveitoso para o país trocar toda a sua biodiversidade, única no mundo, por umas quantas toneladas de óleo”, conclui a reportagem do Téle Nón.

“Depois temos a biopirataria, sob a mão das multinacionais farmacêuticas, que chegam ao Príncipe e tiram daqui espécies endémicas”, assinala Luísa Schmidt, deúncia que é corroborada por António Abreu: “Muita gente vem buscar espécies sem dar cavaco a ninguém”. Dada a dimensão do saque, é forçoso que as autoridades de S. Tomé e Príncipe “instituam o uso e maneio da biodiversidade que inclua o pedido e o registo da intervenção”, acentua o director interino da Reserva da Biosfera, dando conta do trabalho que foi entretanto realizado no levantamento das espécies de répteis e anfíbios que estão em risco, dos quais já foram elaborados os respectivos livros vermelhos.

António Abreu, que continua ligado à reserva da biosfera, chama a atenção para a necessidade de garantir a protecção das inúmeras espécies na reserva do mar, que representa cerca de 80%  da área incluída no projecto da Biosfera da UNESCO, dada a urgente necessidade em proteger as populações que correm tisco de poderem vir a ser depredadas.

Madeiras nobres tombam na Guiné mas há quem resista

Noutra latitude, na Guiné Bissau, a defesa da biodiversidade naquele país agudiza-se . Um elemento daquele país, que pediu anonimato, alegando razões de segurança, descreveu ao PÚBLICO como a floresta gineense “não está bem em termos de preservação”. Exemplares de madeiras nobres estão a ser cortados “em conluio com militares que chegam junto das comunidades com madeireiros chineses”. Estes prometem às comunidades instalar, por exemplo, uma máquina de descasque de arroz, um pequeno centro de enfermagem, para em troca poderem levar madeiras, como o pau-santo.

Assiste-se a uma exploração “desenfreada” de recursos enquanto os militares pressionam a população alegando que os chineses os vêm ajudar. Mas há comunidades que, isoladamente, vão resistindo. “Prometeram a um chefe de tabanca construir-lhe uma bela casa mas este respondeu-lhes que o mais importante para ele era a floresta e a sua comunidade”. Noutro ponto do país, uma pequena etnia que não fala português nem crioulo, “defende sozinha a sua floresta que os chineses querem cortar”, enfrentando a hostilização de militares e de outras comunidades vizinhas, salienta a mesma fonte.

Numa população com 1,2 milhões de pessoas de 32 etnias, 63% não sabem ler e vivem, em média, com menos de um dólar por dia. O esclarecimento da população está a cargo dos voluntários das Organizações Não Governamentais já que o Ministério do Ambiente da Guiné Bissau tem apenas 60 funcionários para todo o país.

Os riscos para a biodiversidade guineense deverão ser centrais, em 2019, no decorrer do V Congresso de Educação Ambiental que irá decorrer na ilha de Bubaque no arquipélago dos Bijagós.

Em contraponto a esta situação descrita, Fernando Saldanha, presidente da Rede Luso da Guiné-Bissau, apresentou um documentário sobre o arquipélago de Bijagós onde se realçava o modo invulgar como se veicula para o presente, através do folclore local e das tradições, práticas ancestrais de preservação e defesa da natureza.

O exemplo da Gorongosa

Outro exemplo dos frutos das acções de educação ambiental chegou de Moçambique, através da intervenção de Manuel Mutimucuio, economista, que destacou o sucesso que está a ter a recuperação do Parque Nacional da Gorongosa, que suportou as consequências dramáticas de décadas de guerra que quase extinguiram a sua rica fauna. A população de búfalos foi reduzida de 4 mil exemplares para menos de 200 e os leões, que chegaram a ser cerca de 2 mil, não passarão agora dos 150 o que dá bem a ideia da dimensão do desastre ambiental que se registou num dos mais emblemáticos parques naturais africanos. 

Acrescem as dificuldades que resultam da concentração populacional em redor do parque que é superior a 200 mil pessoas. E dentro da Gorongosa subsistem 7500 pessoas que não deviam lá estar. Perante um problema social desta envergadura, Manuel Mutimucuio realçou o trabalho de educação ambiental que tem incidido sobre as comunidades que vivem dentro e na periferia do parque, sobretudo junto das crianças que frequentam o sistema de ensino, para atenuar os conflitos que são suscitados pela gestão dos habitats naturais quando está em causa a subsistência de centenas de milhar de pessoas.

O economista, que integra o organismo dedicado ao desenvolvimento humano na Gorongosa, refere que o equilíbrio entre a actividade humana e a natureza “tem registado progressos assinaláveis” na recuperação da fauna e do coberto vegetal no parque natural. O envolvimento das comunidades locais na gestão do parque, foi determinante para os resultados alcançados

É precisamente na premissa do desenvolvimento sustentável que Rogério Roque Amaro, professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), sustenta as suas críticas às propostas do chamado capitalismo verde ou da economia circular, para defender, em alternativa, a economia solidária, baseada na valorização das culturas locais.

O docente fala da economia social baseada na entreajuda, focando exemplos que encontrou na ilha do Príncipe, em que todos os ganhos são repartidos igualmente, num regime de trabalho que assume uma dimensão económica, ambiental e social. E uma das recomendações do congresso vai nesse sentido: “É necessário que a Educação Ambiental incentive e apoie o conhecimento crítico sobre as necessidades materiais e simbólicas que emergem do contexto social”. Por isso devem ser desincentivadas “formas de produção e consumo baseadas no lucro, na ganância e na acumulação privada em detrimento do Bem Comum”.  

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O mundo português numa das mais pequenas cidades do planeta 

O acolhimento deste congresso na pequena ilha foi um teste à força e tenacidade da sua população. Na terra morena que já foi cenário das monoculturas de cacau e café e da opulência colonial, ainda hoje visível nas ruínas das roças onde trabalharam gerações e gerações de escravos ou de trabalhadores forçados, essencialmente filhos de Cabo Verde, Angola e Moçambique, “não se fazia a menor ideia do que aí vinha”, confessou José Cardoso Cassandra, presidente região autónoma do Príncipe.

Mas era tão evidente o seu entusiasmo pela concretização de um projecto sem paralelo na história da pequena ilha que a intervenção de encerramento do congresso de José Cassandra começou com um suspiro de alívio: “Conseguimos!!!” Mas a que custo: “Faltou-me sono. Muito sono”, reconheceu o governante, num desabafo que suscitou uma gargalhada no auditório do Centro de Formação Profissional Potássio Pina, onde decorreu o evento.

Nas declarações que prestou ao PÚBLICO, revelou que os dias de congresso foram para ele noites sem pregar olho. “Cheguei a recear que as coisas pudessem falhar. Do ponto de vista logístico, tínhamos uma gritante escassez de infra-estruturas para recebermos este evento com a qualidade que queríamos, com o requinte que pretendíamos” numa das cidades mais pequenas do mundo.

Joaquim Ramos Pinto, presidente da Associação Portuguesa de Educação Ambiental (ASPEA), uma das entidades organizadoras do congresso, vinca as dificuldades na realização do evento, só possíveis de superar “com o esforço de muitos voluntários”.

Foi necessário instalar condições de acolhimento na restauração, alojamento e transporte, que não existiam ou eram muito rudimentares, para acolher 261 participantes, (113 estrangeiros e 148 de São Tomé e Príncipe). O esforço necessário para a sua realização “equivaleu a um congresso para 5 mil pessoas numa cidade de média dimensão como Lisboa”, compara Ramos Pinto.

Colocado perante a dimensão do congresso e depois de tanto conjecturar sobre o modo de receber os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e ainda do México e da Galiza, o presidente do Governo Regional realçou um aspecto que considerou determinante e incontornável: “Vamos receber os visitantes como nós somos, sem artifícios ou tiques que não nos pertencem”. E assim aconteceu.

O PÚBLICO viajou a convite da Associação Portuguesa de Educação Ambiental

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