Uma obsessão com 40 anos fez de Eduardo Pires de Oliveira historiador

Assistiu a uma conferência quando tinha 16 anos e descobriu o arquitecto André Soares. Andou à procura dele durante as décadas seguintes e isso tornou-o um dos maiores especialistas nacionais em rococó.

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Eduardo Pires de Oliveira doutorou-se há cinco anos sem que antes tivesse completado uma licenciatura Paulo Pimenta
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O historiador considera o Palácio do Raio em Braga a obra-prima do rococó português na arquitectura civil Hugo Delgado
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Igreja dos Congregados, em Braga: outra obra do arquitecto André Soares Paulo Pimenta
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André Soares também desenhou o retábulo do mosteiro de Tibães Daniel Rocha

Eduardo Pires de Oliveira reclina-se na cadeira e estica o dedo indicador na direcção de uma estante à sua direita. “É esse livro aí, de capa castanha”, diz. O movimento há-de repetir-se algumas vezes ao longo da conversa, seja para apontar um livro de referência ou um dos muitos volumes de que é autor. Quase podia resumir-se na sua imensa biblioteca o percurso deste historiador de arte, doutorado há cinco anos sem que antes tivesse completado uma licenciatura. A sua vida deu muitas voltas, mas foram os livros que estiveram sempre no seu centro.

Alguns amigos mais próximos já chamaram ao seu apartamento, em Braga, um T1+Biblioteca. Aparte o quarto de dormir, toda a casa está coberta de livros. Todavia, há um lugar especial, numa das prateleiras da sala de estar, onde estão quatro imensos volumes, que totalizam mais de 2000 páginas. André Soares e o Rococó no Minho, lê-se nas capas e nas lombadas. É este o título da tese de doutoramento em História da Arte que Eduardo Pires de Oliveira defendeu, em 2012, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Esse momento foi o culminar de 40 anos a desvendar a vida e a obra de André Soares, o arquitecto que foi um dos expoentes máximos do rococó em Portugal.

De onde lhe vem esta ligação tão intensa com um homem que morreu há quase 250 anos? “Eu não acredito em bruxas, mas se calhar estava destinado”, responde, entre risos, Pires de Oliveira. O historiador de arte nasceu em Braga, no Hospital S. Marcos, na ala do edifício que foi precisamente projectada por André Soares. Depois mudou-se para Pico de Regalados, hoje uma vila, no concelho vizinho de Vila Verde, onde a mãe era professora do ensino primário. O retábulo do altar da igreja de Pico de Regalados é também da autoria do arquitecto do século XVIII.

Nessa altura, porém, Eduardo Pires de Oliveira ainda não sabia destas coincidências. A “revelação” acontece aos 16 anos, quando assistiu a uma conferência dada em Braga por Robert C. Smith, um investigador norte-americano que estava a descobrir o papel de André Soares na arte nacional. “Fiquei espantado com aquele homem, que falava bem e era muito claro. Essa foi também a primeira vez em que ouvi falar do André Soares. E, tal como eu, também a esmagadora maioria das pessoas que estavam a assistir”, recorda.

Esse momento marcou-o ao ponto de ter passado os 40 anos seguintes a tentar descobrir um homem que, naquela altura, ainda estava um pouco envolvido na aura de “mito”. Ainda seria preciso esperar até 2008, quando começou o doutoramento, para que Eduardo Pires de Oliveira se tivesse dedicado a tempo inteiro a Soares, mas antes disso, entre as várias vidas que foi tendo, nunca deixou de investigar a vida e obra do arquitecto.

“O André” – como muitas vezes se refere a Soares, denunciando a familiaridade que tem com a personagem histórica – “nunca esteve fora” do seu percurso, garante. “Ele é o símbolo maior do Minho e o Minho esteve sempre presente nas coisas que eu fazia.” Durante décadas, Pires de Oliveira foi “acumulando coisas”. Comprou livros, tantos quanto podia. Aguçou a curiosidade pela arquitectura barroca na região com viagens, visitas, conversas.

Depois, a partir de 1989, começa a fazer investigação documental. Durante cerca de seis anos, usou o seu tempo livre para incursões nos arquivos distritais de Viana do Castelo e de Braga e nas 62 confrarias da cidade e outras da região. Ao mesmo tempo que fazia a investigação, aos fins-de-semana, continuava a visitar igrejas e capelas, palácios e casas senhoriais, um pouco por todo o Minho.

Hoje, conhece como ninguém todas as linhas, as curvas e os detalhes da obra de André Soares. Tornou-se um dos maiores especialistas do barroco português, com um lugar como investigador integrado do Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e convites anuais para dar aulas e conferências no Brasil, sobretudo no Estado de Minas Gerais — para onde viajaram muitos artistas minhotos, construindo alguns dos principais monumentos barrocos daquela região brasileira.

Tudo por causa de André Soares, que era ainda um jovem arquitecto quando foi chamado a desenhar o palácio episcopal (1744 e 1751) para o arcebispo D. José de Bragança, irmão do rei D. João V, que então se instalava em Braga. Segundo expõe Eduardo Pires de Oliveira, o sucesso da obra tornou-o um homem particularmente requisitado nos anos seguintes na cidade, desenhando a Casa da Câmara (1753-1756) — que ainda hoje é a sede do município —, o Palácio do Raio (1754-1755), que o historiador de arte considera a “obra-prima” do rococó português na arquitectura civil. O estatuto de peça maior na arquitectura religiosa é atribuído por Pires de Oliveira à pequena Capela de Santa Maria Madalena da Falperra (1753-1755/1763), que encara a cidade de Braga a partir de uma colina, mas que formalmente se situa no concelho de Guimarães.

André Soares não foi apenas arquitecto. Também desenhou retábulos, no Convento de Tibães (1757-1760) e na Sé de Braga, Nossa Senhora da Boa Memória (1767), por exemplo, e um mapa de Braga, de 1756, que é visto como uma pérola pela precisão do desenho. Também andou por fora de Braga, projectando, entre outras, a Igreja dos Santos Passos (1769), em Guimarães, a sua última obra, ou o retábulo de Nossa Senhora do Rosário do Convento de S. Domingos, em Viana do Castelo.

Na sua investigação, Eduardo Pires de Oliveira contextualiza André Soares em termos familiares e sociais e também na sua época, dá visibilidade aos artistas (entalhadores e pedreiros) que com ele trabalharam, para fazerem as suas obras complexas sair do papel. Contudo, o que lhe interessa realmente numa obra de arte “são as formas e as emoções que esta causa”, explica. Apenas conhecendo as emoções que a obra causa, o historiador de arte diz ser possível “saber qual é o seu âmago”. “É depois a partir daí que eu posso fazer relacionamentos”, acrescenta o historiador de arte.

As investigações não o levaram, por isso, a viajar apenas pelo Minho. Em 2000, graças a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, parte também para a Baviera, na Alemanha, e a Áustria, regiões que são expoentes máximos do rococó na Europa, à procura das obras que poderão ter inspirado André Soares. Não ficou por aí, a partir de 2005, passou tardes na Biblioteca Municipal do Porto e na Faculdade de Belas-Artes a vasculhar os tratados de arquitectura.

“Fui sistemático, obsessivo mesmo”, comenta Pires de Oliveira. A partir desse trabalho exaustivo construiu uma base de dados de 70 mil fichas e quatro mil slides — a que ainda hoje muitos alunos e investigadores, sobretudo portugueses e brasileiros, lhe pedem para recorrer em diferentes trabalhos. Por isso, quando parte para a tese de doutoramento, “a investigação, grosso modo, já estava feita”.

De resto, foi esse trabalho anterior que justificou que a Fundação para a Ciência e Tecnologia lhe tivesse entregue, em 2008, uma bolsa de estudo de quatro anos, quando não tinha uma licenciatura completa. “Relevância de currículo”, justificou então o organismo público que financia a investigação científica. Essa possibilidade está contemplada nos regulamentos da instituição, mas esta foi a primeira vez que tal aconteceu na História da Arte.

Antes de entrar no doutoramento, Eduardo Pires de Oliveira já tinha mais de 150 títulos editados, entre livros de divulgação e defesa do património, e artigos publicados em revistas científicas e actas de congressos. As primeiras obras da sua bibliografia não podiam ser mais relevantes. Em 1982, edita Braga: Evolução da Estrutura Urbana, juntamente com os arquitectos João Lopes e Eduardo Souto Moura, futuro prémio Pritzker. Na mesma altura, estava a trabalhar na Bibliografia Arqueológica Portuguesa, que acabaria por ser editada em 1984 pelo então Instituto Português do Património Cultural. Entretanto, acrescentou-lhes mais 70.

Os livros estiveram à volta de Eduardo Pires de Oliveira desde a infância: “Houve sempre muitos, em casa.” A mãe era professora e foi um motor importante da sua formação. O pai, funcionário do sindicato dos trabalhadores do comércio, não lia mais do que o jornal, mas o Comércio do Porto que trazia regularmente para casa foi “fundamental” para que Eduardo começasse a ler ainda em criança. “Isso foi importante para mim, como foi a banda desenhada de Pato Donald”, considera, ou os fascículos com as histórias de Sherlock Holmes, que tinham sido compradas pelo avô, e que lia compulsivamente nas férias da escola. “O importante é ler. Quando se começa a ler, fica-se com vontade de ler mais, e mais, e mais.”

Além de ler, também escreveu sempre. Em 2002, era um dos colaboradores regulares do PÚBLICO, quando o jornal lançou o caderno “Minho”, no qual escrevia a coluna “Passeio Público” sobre património da região. A crónica deu também origem a um conjunto de visitas guiadas pela região que, 15 anos volvidos, continuam a realizar-se.

Pires de Oliveira foi a primeira pessoa a completar um doutoramento em História da Arte sem antes ter feito uma licenciatura. Enquanto jovem tinha, porém, chegado a frequentar um curso superior, Humanidades e Filosofia, na Universidade Católica, em Braga. Não chegou, todavia, a completar os dois primeiros anos do curso. “Não gostei do sistema”, atira. Mas também é verdade que nessa altura tinha já outros interesses, como a arqueologia, que praticava desde os 16 anos.

Foi essa a verdadeira porta de entrada de Eduardo Pires de Oliveira no mundo da História. “Houve um curso de iniciação à arqueologia em Braga. O professor de História alertou-nos e eu fui”, conta. Com ele foi também um grupo de alunos, quase todos da sua idade, embora quase nenhum deles tenha continuado a fazer escavações por muito tempo. A primeira experiência foi no Largo de S. Paulo, no centro da cidade. Um sítio “complicado”, pois sucediam-se artefactos romanos, suevos, medievais e modernos no mesmo espaço. “Não foi o melhor sítio para começar”, sublinha.

Nos anos seguintes, Eduardo Pires de Oliveira também escavou na encosta da Falperra e em diferentes castros da região. Depois disso, foi para Conímbriga. “Tinha uma atracção pelo desconhecido, por saber mais. E queria trabalhar ao lado dos grandes especialistas, que estavam lá”, justifica. Assim fez. Passou 20 dias no centro do país, onde conheceu Jorge de Alarcão, um dos grandes especialistas nacionais no período romano. Nessa altura, ainda não sabia que esse cruzamento viria a revelar-se fundamental na sua vida.

Aos 20 anos, Eduardo Pires de Oliveira deixou em definitivo o curso de Humanidades e Filosofia e foi fazer tropa. No regresso à vida civil, casou e os livros voltaram a cruzar-se na sua vida. Foi vendedor da editora Lello, enfiando volumes dentro de um Mini que ia vender um pouco por todo o país. Pelo caminho, foi encontrando em livrarias e alfarrabistas algumas das raridades que hoje tem na sua biblioteca.

Depois do 25 de Abril, tornou-se funcionário público, entrando nos quadros da Segurança Social, mas não ficou nessas funções muito tempo. Em 1977, são feitas as primeiras escavações arqueológicas sistemáticas de Bracara Augusta e é Jorge de Alarcão quem as coordena. Por causa da sua experiência de escavações anteriores na cidade, Eduardo Pires de Oliveira é chamado a colaborar com o especialista, que já conhecia da sua passagem por Conímbriga, e é dispensado do serviço por uns dias para ir prestar apoio nos trabalhos.

Meses mais tarde, quando arranca a Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, é requisitado por um período mais longo. Ao fim de três meses, a necessidade torna-se permanente e passa dos quadros da Segurança Social para os da universidade.

Entretanto, foi um dos membros fundadores da associação de defesa do património bracarense ASPA, que este ano completa 40 anos de existência. Envolveu-se nas lutas cívicas para travar a construção em zonas arqueologicamente sensíveis, como a colina da Cividade, onde hoje se encontram musealizadas as ruínas das termas romanas e o teatro romano, ainda à espera de melhores dias para ser escavado.

Continuou a trabalhar em arqueologia até 1994, mantendo sempre, em paralelo, a sua investigação sobre o barroco e o rococó no Minho. “Cansa-se”, finalmente, das escavações em 1994 e torna-se bibliotecário na Biblioteca Pública de Braga, de onde saiu, por aposentação, há quatro anos. Outra vez os livros. Hoje, continua a escrevê-los, a uma média de dois por ano. Os últimos dos quais uma versão da segunda parte da sua tese de doutoramento, Estudos sobre André Soares, o Rococó e o Tardobarroco no Minho e no Norte de Portugal e Histórias de Sibilas Entre Braga e Diamantina, em co-autoria com os investigadores brasileiros Maria Cláudia Magnani e João Baptista Gomes. Eduardo Pires de Oliveira nunca foi homem de ficar parado. Volta a rir-se, anuindo: “Se calhar continuo um puto.”

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