Paredes de Coura: E se fizéssemos aqui um festival de música para jovens?

O festival que nasce de um “impulso” de um grupo de jovens transformou-se na bandeira de uma vila que ao longo das 25 edições foi crescendo com o evento.

Foto
João Carvalho, um dos fundadores do festival, voltou a mergulhar no rio no dia em que visitámos Paredes de Coura — desta vez com roupa. Foi aí que o festival nasceu, em 1993 paulo pimenta

É numa noite de fados, em 1993, que se traça o destino dos anos seguintes de uma vila pacata do Minho. Agora chamam-lhe a “vila do rock”, na época, no concelho de Paredes de Coura, as festas grandes eram a das Angústias e a da Nossa Senhora do Livramento. Nessa altura, o festival de Vilar de Mouros estava adormecido há uns anos e os grandes festivais de rock no Verão estavam longe de ser uma realidade.

Há um grupo de jovens, na casa dos 20 anos, que parava na rua principal, onde se encontravam nessa noite, que decide descer à praia Fluvial do Taboão para espreitar o espectáculo montado para que a população pudesse ver o resultado da obra de requalificação de uma mata junto a uma das margens do rio Coura. Desse grupo faziam parte Vítor Paulo Pereira, José Barreiro, Filipe Lopes e João Carvalho. Quando lá chegaram viram um espaço “deslumbrante”. Alguém tem uma epifania: “E se fizéssemos aqui um festival de música para jovens?”.

Lá, na noite de fados de Coimbra, estavam presentes o presidente da câmara e um vereador. Num “impulso”, João Carvalho toma a iniciativa e apresenta a ideia aos autarcas. No dia seguinte têm uma reunião nos Paços do Concelho, onde lhes são dispensados “180 contos” (900 euros) do orçamento para montar o evento. Nasce o festival Paredes de Coura (PdC) que este ano celebra 25 edições que puseram a vila, que agora se confunde com o próprio festival, no mapa.

Eram 12 no início. Agora são três os fundadores que continuam a teimar em organizar o evento todos os anos: José Barreiro, Filipe Lopes e João Carvalho. O presidente da câmara já não é o mesmo. Quem lá está é Vítor Paulo Pereira, outro dos fundadores. O palco principal também já não é no mesmo sítio. No local onde se montou pela primeira vez é onde está actualmente o do Jazz na Relva, próximo da margem do rio onde João Carvalho voltou a mergulhar no dia em que visitamos Paredes de Coura, desta vez com roupa.

Foto
Há uma simbiose entre a vila e o festival, como se um e outro fossem uma e a mesma coisa paulo pimenta

A 20 de Agosto de 1993 tocavam ali ao lado os cabeças de cartaz Ecos da Cave, os “metaleiros” Gangrena, Boucabaca, Cosmic City Blues e os Purple Lips, compostos pelos irmãos Praça, na altura nos Turbojunkie, que por não poderem levar a banda toda apresentaram-se com outro nome. Todas as bandas foram contactadas a partir da cabine telefónica que existia no centro da vila, recorda João Carvalho, que até à terceira edição diz ter sido “o escritório do festival”. Foi o cartaz possível, com o orçamento que havia para o arranque do evento que nasce de “obra do acaso”.

Os contactos das bandas descobriram-nos na secção de divulgação do Blitz. “Na altura era a forma mais fácil de os conseguir”, conta. Apesar do orçamento limitado, a escolha foi consciente e apostaram em nomes que estavam a despontar no cenário musical nacional. Do dinheiro que tinham para gastar nada sobrou para o palco. Tiveram de o construir em madeira e montá-lo à custa de esforço próprio: “Nas primeiras edições, a meio da montagem, muitas vezes tínhamos de sacudir a terra da roupa para ir ao banco assinar um empréstimo para fazer um pagamento”.

Pouco havia para fazer em Paredes de Coura naquela altura. Do grupo de amigos, João Carvalho era dos poucos que estava na vila. Os outros estudavam fora. Lá, tinha um programa na Rádio Voz do Coura, onde passava The Cure e The Smiths. Dia de festa e “momento mágico” era quando ia ao posto dos Correios para levantar as encomendas que fazia com regularidade na Tubitek. A casa chegava com discos dos Diesel Park West, Gene Loves Jezebel, “que na altura eram uma banda boa”, dos The Sundays, Inspiral Carpets e “outras tendências da altura”. “Não havia outra forma de conseguir discos em Coura”, diz. Para combater o “isolamento” serviam também as reuniões para organizar o festival: “Nas três primeiras edições era um dos pretextos que tinha para arrastar para cá o pessoal que estava fora."

Em 1996 trazem as primeiras bandas internacionais, uma delas são os Shed Seven, para quem marcaram uma viagem a menos de avião no regresso dos britânicos a casa. “Era outra estrutura e eram outros tempos. Enquanto uns distraíam a banda, outros tentavam comprar um bilhete sem que ninguém reparasse." A coisa resolveu-se sem ninguém dar por isso. Tocaram ainda os Raincoats. Nesse ano mudam-se para o anfiteatro natural onde ainda é montado o palco principal. “A câmara não queria que estragássemos a relva e arranjou-nos um espaço maior." Na verdade, explica que o chamado  “anfiteatro natural” sofreu intervenção humana: “Para aquilo ficar assim tiraram-se alguns camiões de terra."

Foi aí que tiveram a percepção de que o festival ia crescer. Monta-se um “palco a sério” e cobra-se pela primeira vez um bilhete. Mil escudos para três dias de festival com mais de uma dezena de bandas. “Naquela altura o valor da entrada ainda gerou discussão. Ninguém fazia aquilo por dinheiro. Tinha aquele medo serôdio de que com um bilhete as pessoas já não viessem”, recorda. No ano seguinte trazem um nome internacional de peso para encabeçar cada um dos dias, os Paradise Lost, Smoke City e Rollins Band.  “Foi emocionante ver no local onde costumava brincar uma banda que até à altura só era possível ver na MTV. Caíram-me as lágrimas durante o concerto”, diz referindo-se à banda de Henry Rollins.

Foto
Xapas Bar, local que já os fundadores frequentavam paulo pimenta
Foto
No Paulo’s Bar, o orgulho à vista de todos nas paredes do café paulo pimenta

É em 1999, ano em que tocam os dEUS, Suede, Lamb e Mogwai, que há uma enchente com a qual ninguém contava. “Ficámos todos assustados. Começam a chegar camionetas cheias de gente e a empresa de transportes entra em pânico. Receámos que as infra-estruturas não aguentassem." Em cima do joelho alugam-se mais uns campos para poder acolher mais pessoas. É este o primeiro ano em que conseguem ter lucro. No final do festival surge a questão: “O que é que vamos fazer com este dinheiro todo?”.  Distribuem parte dos lucros por algumas instituições do concelho e vão os quatro de férias juntos “passar um bom bocado”.

Aprenderam na edição seguinte que nada pode ser tomado como garantido. “Há uma chuva imensa e o festival correu muito mal, com um grande prejuízo no final. Aprendemos nesse ano a ser empresários. Se um ano dá não quer dizer que no outro a coisa funcione."

O mesmo acontece em 2004. Os LCD Soundsystem mudam-se para o palco principal na sequência do desabamento do secundário. A chuva não parava e por isso há uma reunião de emergência com o chefe da segurança, a empresa do sistema de som e de luz e a câmara. Toda a gente acha que o festival deve ser cancelado por estar em causa a possibilidade de um curto-circuito, de desabamento do palco principal e a segurança do terreno e das pessoas. Todos menos a organização: “Víamos cerca de quatro mil pessoas frente ao palco, algumas em roupa interior, a quererem ver concertos. Dissemos sempre que não." O festival continuou com um “prejuízo brutal”, que foi aumentando com o investimento para tratar da lama, reforçar o palco e a segurança e para comprar capas de chuva para distribuir pelo público. Para a história fica a imagem de Jon Spencer a pontapear a lama enquanto dizia que foi uma das melhores noites da carreira dos Blues Explosion, recorda João Carvalho, que o testemunhou.

Essa edição ficou também na memória de Luís Rocha, funcionário da Agrilcoura, na rua Bernardino António Gomes, que não se lembra de outra altura em que tivesse vendido tantas galochas ou plástico. “Foram sete rolos, cada um com 80 quilos. Esgotámos o stock e tivemos de recorrer a Braga para poder vender mais." Embora diga que este não seja o negócio da vila que mais beneficie com o festival, quando chove é enchente garantida: “Tivemos de fechar a porta e deixar entrar apenas alguns clientes de cada vez, tal era a enchente."

Foto
paulo pimenta

O responsável pelo festival diz que talvez tenha sido a decisão de continuar com o evento até ao fim que contribuiu para a relação de respeito que foi sendo criada com o público. “Teria sido muito mais cómodo e menos dispendioso ter cancelado tudo. Acho que as pessoas perceberam isso."

No rescaldo desse ano, pela primeira vez, os fundadores questionam a continuidade do evento: “Foram dez segundos até mudarmos de opinião. Os anos de 2000 e 2004 foram muito importantes para fortalecer o festival”.

Ditaria o bom senso que a próxima edição fosse “mais pequena” ou que se tentasse primeiro “encontrar novo patrocinador”. Entendeu a organização que se “entrasse com tudo” e se garantisse o maior cartaz de sempre até à altura. Não fazê-lo seria “fragilizar” o festival. “Se acabar, acaba em grande”, foi o mote. É o ano de Queens of the Stone Age, Foo Fighters, Nick Cave, Pixies, The National, Arcade Fire, um dos melhores concertos que João Carvalho diz ter visto, Juliette & the Licks e da descoberta dos Wovenhand, que saltam para o palco principal depois do cancelamento dos Killing Joke. “Fazer um festival desta dimensão sem patrocinador é absolutamente surreal. Quando acabou, o lucro deu para pagar o telefone. Não deu para abater o prejuízo do ano anterior”, conta, mas deu para solidificar o festival e para o catapultar além fronteiras. “Entrou no roteiro internacional. Ganhámos uma nova alma”. Alma que se alastrou a toda a vila. Hoje o festival consegue garantir sempre casa cheia e encontrar patrocínio deixou de ser um problema.

O festival também se faz na vila

A faltar mais de uma semana para o festival, percorremos a pé as ruas de Paredes de Coura. Existe uma simbiose entre a vila e o festival, como se um e outro fossem uma e a mesma coisa. No Largo 5 de Outubro, a esplanada do café Carla já está preparada para os forasteiros, que costumam chegar uma semana mais cedo, diz-nos a proprietária, Maria Sousa. Há 30 anos que é comerciante e desde o início do evento que se habituou a receber caras desconhecidas na vila. Nos primeiros anos fazia o negócio num bar perto do recinto. A vila que não chega aos dez mil habitantes transforma-se em Agosto numa “cidade grande”, diz. “São duas semanas de festa." É a melhor altura do ano para o negócio e a “mais animada”. “O festival passou a ser a maior festa do concelho”, afirma.

Depois do largo, começa a “rua principal” que acaba na praça onde está a Câmara Municipal. A fachada do edifício está decorada com nomes de bandas do cartaz, feitos com luzes néon. Em frente, nuns bancos de pedra, está um grupo de courenses de gema, na faixa dos 60-70 anos. “É a vila do rock”, diz Isaura Bandeira. O grupo concorda. “Aqui toda a gente gosta do festival”, interrompe Franklin Loureiro. “Dantes ninguém conhecia a terra, agora até lá fora sabem que é onde se faz o rock”, volta Isaura à conversa.

Foto
paulo pimenta

Há um orgulho na terra que surge na sequência do reconhecimento que o festival foi conquistando. Na Rua da Quinta Nova, não muito longe dali, está o Paulo's Bar, que Paulo Junqueira abriu há 24 anos, altura em que o festival começou. Esse orgulho está à vista de todos nas paredes do café. Estão lá quase uma dezena de cartazes de várias edições do festival. Já estiveram os cartazes todos, que foram guardados porque alguns “foram descolando”. Na “reserva” continua a coleccioná-los todos. Por altura do festival, Paulo fica “uma semana sem dormir” e quase sem sair do bar. Fê-lo uma vez. O Nick Cave tocava “lá em baixo” e aí “não havia outro remédio”  se não deixar o bar nas mãos de outra pessoa para poder ver uma das suas referências a nível musical.

Toda a vila se envolve com o festival, diz João Carvalho. Ao longo dos anos foram também surgindo outras infra-estruturas que acompanharam o crescimento do evento. Exemplo disso é a Escola do Rock, projecto que lança o convite aos músicos nacionais para todos os anos poderem participar na banda criada por Nuno Ferros, também um dos fundadores do PdC, que este ano toca num dos palcos. Outro projecto na área da música criado nos últimos anos pela autarquia é a Caixa da Música, espaço de concertos com programação regular. Diz o organizador que há também bandas novas que vão sendo criadas.

Quem já frequentou o espaço localizado na praça frente ao edifício da câmara é José Castro, que está sentado na esplanada do Xapas Bar, local que já os fundadores frequentavam. Tem 32 anos e já foi “várias vezes” ao festival. Natural da vila só falta quando tem de trabalhar. Ao longo dos anos diz ter assistido a uma mudança nos hábitos dos courenses, “mais predispostos” a participar em eventos culturais. O festival diz ter contribuído para formar os gostos musicais dos que foram crescendo com o evento. Há agora um público mais exigente e “mal habituado”. “Há mais eventos durante o ano, mas muitos queixam-se de que não é suficiente. Quando o termo de comparação é o festival é difícil ficarmos satisfeitos."    

Sugerir correcção
Comentar