Fernanda Botelho, o ressurgir de uma audaz ironia

O fim do esquecimento pode começar com Esta Noite Sonhei com Brueghel. O romance inaugura, por parte da Abysmo, a reedição da obra completa de Fernanda Botelho, uma das escritoras mais notáveis da segunda metade do século XX.

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A Abysmo iniciou a reedição da obra completa da escritora com Esta Noite Sonhei com Brueghel, um dos seus romances mais emblemáticos e complexos

Uma mulher escreve e nessa escrita procura-se. "Esta Noite Sonhei com Brueghel. É assim que se chama. Autobiográfico. Comecei-o há doze anos em Bruxelas", diz ao amante antes de ele a deixar em casa, numa rua de Lisboa, e anunciando-lhe que talvez mostre ao marido esse manuscrito onde todas as personagens dessa vida que é a dela têm o nome real. "Não são personagens, conheço-as. Mas são personagens, sim senhor! São e não são. Mas, no manuscrito, parecem personagens. Percebes?" Uma dessas personagens é ele, o amante, e não é sem uma "gargalhadinha" que ela lhe fala de tudo isto no misto de ironia, cinismo, despojamento de emoção, exercício de autocrítica, jogo - com o carácter duplamente lúdico que o exercício desse jogo implica, para o leitor e enquanto práctica de escrita -, e uma espécie de angústia que atravessa todo o romance, o sétimo de Fernanda Botelho, uma das escritoras mais originais, exímia praticante da língua portuguesa, capaz de convocar o abismo enquanto compõe, por exemplo, o que aparenta ser apenas um diálogo social, inconsequente, e nisso compondo não só um retrato pessoal, íntimo, mas também o do país num certo tempo. 

A mulher que escreve é a mesma que anuncia essa escrita. Chama-se Luiza. "O quarto, este quarto, propõe efectivamente uma gama apreciável de distracções. Se não fosse tão confortável, tornar-se-ia assustador, pelo fascínio que a matéria exerce sobre os espíritos débeis, influenciáveis e sensitivos. Tal é, em síntese, o meu auto-retrato, a que se acrescentará, como toque final (porventura não tão final como isso!), uma notável tendência para a evasão burlesca ou romanesca, indiscriminadamente. Indiscriminadamente em tudo: tão depressa me sinto pássaro de colorida plumagem debicando alpista em sacadas de Julieta, como silenciosa escrava em bordel marroquino para tropas no deserto!", lê-se no arranque do manuscrito datado de 1972, período de decadência de um regime que exacerba a ambiguidade em que tudo se desenvolve: individual, social, de costumes, de género, matérias que a escritora trata à luz do seu presente narrativo, doze anos depois, mas com sobejado conhecimento do que foram esses anos que lhe permitiram a experimentação literária, ficcional, superando o neo-realismo da geração imediatamente anterior - de que ainda recebeu influência nas primeiras obras -, e também indo além do entusiasmo pelo existencialismo que marcou muitos dos escritores europeus no pós-guerra. 

Uma desconhecida das novas gerações

Fernanda Botelho criou um universo muito pessoal nos poemas, contos e sobretudo nos 12 romances publicados entre 1957 e 2003. Neste momento nenhum deles se encontrava disponível no mercado e a escritora é uma desconhecida das novas gerações de leitores. Um caso de esquecimento comparável, pela dimensão da falha, ao que recai sobre uma sua contemporânea e amiga: Maria Judite de Carvalho. A partir deste mês, no entanto, deixa de haver desculpas para não ler Fernanda Botelho. A Abysmo iniciou agora a reedição da obra completa da escritora, justamente com Esta Noite Sonhei com Brueghel, um dos seus romances mais emblemáticos e complexos, e ainda este ano editará um segundo título. "Vamos publicar ao ritmo de dois títulos por ano, todos os seus poemas, contos e romances e incluir alguns inéditos", refere João Paulo Cotrim, o editor que conta para isso com o apoio da família de Botelho. 

É uma escolha acertada para relançar a obra desta escritora nascida no Porto, em 1926, numa família aparentada com Camilo Castelo Branco, formada em Filologia Clássica, tradutora - traduziu o Inferno, de Dante - co-fundadora da revista Távola Redonda, amiga de David Mourão-Ferreira ou Urbano Tavares Rodrigues, de quem Jorge de Sena afirmou ser "das melhores ficcionistas da actualidade", uma actualidade que era a segunda metade do século XX português. Quando morreu, em 2007, com 81 anos, já poucos sabiam da importância decisiva de Botelho na redefinição do romance português moderno e eram menos ainda os que a liam, apesar do seu último livro, Gritos da Minha Dança, ter sido publicado apenas quatro anos antes.

Todos os seus críticos sublinham a ironia como uma das características mais marcantes da sua escrita e muitos complementam essa informação acrescentando-lhe um adjectivo: trágica. Há uma gargalhada, um risinho, a crítica social pontuada por um sentido trágico que se manifesta na perdição de algumas das suas personagens inseridas num colectivo que é também de deriva. "... creio que, na vida de cada mulher, há sempre um homem que lhe faculta os subsídios para um suicidiozinho", diz Luíza num encontro social, entre copos e piadas, num dia que se sucedeu à noite em que sonhou com a pintura de Brueghel. Ela conta isso a Rui, primeiro marido, pediatra, quando os dois estão em Bruxelas num encontro de médicos, as mulheres no papel de submissão, um segundo plano que Botelho não chega a desenvolver, mas aparece latente na escrita. “Era assim”, parece ouvir-se numa leitura feita hoje.

 A gente de Fernanda

E Brueghel, o pintor flamengo do século XVI, funciona como uma espécie de guia, "fio condutor no meio deste labirinto desesperado", salienta Paula Morão no texto de introdução a esta edição da Abysmo. As telas de Brueghel funcionam como um espelho que fornece uma identidade de difícil confronto. Luiza é filha de mãe flamenga, como o pintor, e de pai português, estudioso de Damião de Góis, homem do mesmo século de Brueghel, e os efeitos dessas origens manifestam-se de forma que deixa antever vários enigmas. Botelho exacerba esse efeito no modo como manipula a sobreposição de vários tempos, justapõe duas geografias – Bélgica e Lisboa -, intercala o estado de alerta com a imersão no subconsciente e deixa entrar múltiplas vozes sem anúncio prévio, construindo numa teia narrativa que faz parte do tal jogo que é também o da própria construção do romance.

Esta Noite Sonhei com Brueguel situa-se a esses dois planos, é escrita e escrita sobre a escrita, exercício do qual a escritora parece retirar um prazer semelhante ao que atinge o leitor quando se acha no meio de uma rede, o labirinto de que fala Paula Morão, seguindo um fio que a escritora vai desfiando à medida que avança na busca do auto-conhecimento. De Luiza, e inevitavelmente de si própria, Fernanda. E também de cada um de nós leitores ou enquanto colectivo. Com a personagem, entramos no museu de Antuérpia. “O silêncio do museu é o silêncio doméstico da minha infância, mas há aqui uma claridade inexistente lá”. Outra vez o enigma. Luíza espera que a luz de Breughel venha iluminar os seus “demónios”, como iluminou os dele e da época que pintou. Faz a ponte para si, para o seu tempo, o seu lugar a viver o obscurantismo de uma ditadura, a família. A palavra autobiografia ecoa. “Luísa é Fernanda – a sua, a nossa desassombrada efígie”, escreve Paula Morão.

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Criou um universo muito pessoal nos poemas, contos e nos 12 romances publicados entre 1957 e 2003. Nenhum deles se encontrava disponível no mercado e a escritora é uma desconhecida das novas gerações de leitores

A luz de Brueghel não é meiga como não é doce a escrita de Fernanda Botelho, nem tom da escrita de Luíza. Há nelas uma caricatura, mas com a precisão que a caricatura não tem. Une-as a comicidade associada a uma espécie de funesto. E isto pode resumir-se a uma equação para a qual Botelho se propõe encontrar o resultado quando mostra o pensamento de Luíza. “A gente de Brueghel ostenta com desfaçatez a sua vocação primária para o vício incorrupto, tanto como para um casto e regozijado amor à terra pródiga  -- mas que significa isto afinal?”

Será assim a gente de Botelho? Ela parece partir dessa ideia de caricatura, grotesca, viciosa, para propor uma escrita, precisa, ajustada à descrição de uma vida e de uma realidade. No eu de Luíza, que tanto fala na primeira como na terceira pessoa, em diálogos ou solilóquios, através dos maridos, amantes, amigos, conhecidos, Botelho dá-nos esse colectivo enquanto adensa o mistério de uma vida. “Estás a ver, Brueghel? Lá volto eu aos teus estropiados. Aos teus mendigos sem pernas. A gangrena faz deles essas metades de gente a caminhar sobre cotos encardidos, libertação de fantochada, acaba-se o carnaval de miséria, enchapelada de mitras e de penicos coloridos. A árvore no caminho d’eles, numa estrada de lama, a caminho do Porto, eles, que eram inteiros – cabeça, tronco e membros! Ei-los subitamente irreconhecíveis, o peito colado às costas, uma pastelada de nervos, músculos triturados e ossos fasquiados! Não, Brueghel, nunca vi um corno desabrochado numa cabeça de gaivota, mas imagino bem um banho de sangue com farripas de cabelos no lodo das cores decompostas! Lá ficaram esmagados todos os belos pensamentos sobre Damião de Góis, porventura os amores ocultos, os segredos irrevelados de uma vida inteira! Meus miseráveis pais!”  

É a olhar para Brueghel que Luíza se reconstrói. Primeiro, de forma quase passiva, contemplando, estabelecendo afinidades. E num segundo momento, o que sucede à revelação do manuscrito ao amante que se saberá mais tarde chamar-se Pedro, ou Pepe, de forma compulsiva, “uma escrita de sobrevivência”, como lhe chama Paula Morão.  

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