Um ano depois, o fogo ainda arde na memória do Funchal

Há precisamente um ano, um pequeno incêndio em São Roque, uma das zonas altas do Funchal, transformou-se num vendaval de fogo que varreu a cidade. Causou três mortos, 600 desalojados e prejuízos de 157 milhões de euros. Um ano depois, o que foi feito?

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Passaram 12 meses. Um ano. Carlos e Arlete continuam “provisoriamente” num apartamento espaçoso de que estão a aprender a gostar. Gregório Cunha
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A casa onde durante quatro décadas viveu com a mulher Arlete ficou transformada num esqueleto retorcido pintado de negro. Deve continuar no mesmo estado, mais decrépita até, com os 12 meses de abandono. Carlos não voltou lá depois desta fotografia Gregório Cunha

A última vez que Carlos subiu a entrada 32 do Caminho Novo do Galeão, em São Roque, foi no carro do PÚBLICO. Estávamos no final de Agosto do ano passado, e tinham passado menos de três semanas desde que os incêndios tinham transformado em cinza aquela zona do Funchal.

A casa, onde durante quatro décadas viveu com a mulher Arlete, onde o cão era parte da família e a filha cresceu antes de partir para França, era um esqueleto retorcido pintado de negro. Deve continuar no mesmo estado, mais decrépita até, com os 12 meses de abandono.

Carlos Silva não sabe como está. Não quer saber. A psicóloga que o acompanha proíbe-o de lá voltar. Arlete explica porquê. “Ele fica pior. Tem pesadelos à noite. O que passou, passou”, diz a mulher, sentada no sofá forrado a vermelho, na sala de um T2 no centro da cidade. “O que passou, passou”, repete Carlos, quase num murmúrio, como se quisesse afugentar dali a memória de quem viu o fogo bater à porta, e não teve como não a abrir.

Passaram 12 meses. Um ano. Carlos e Arlete continuam ali, “provisoriamente” num apartamento espaçoso de que estão a aprender a gostar.

“Não foi fácil. Não é fácil. Sempre vivemos numa casa, e isto é diferente”, justifica Arlete, sorrindo das vantagens de morar no centro da cidade. “É um bom apartamento. Temos tudo aqui à volta. Só os vizinhos é que são… [faz uma pausa para escolher a palavra certa] um pouco frios. Sabe?”

Em Agosto de 2016, quando lá chegaram com a promessa que seria “uma coisa provisória”, encontraram o apartamento despido. Depressa amigos juntaram-se e trouxeram vestuário, um colchão ortopédico para as “costas” de Carlos. Um sofá para matarem o tempo frente à televisão. Em Agosto de 2017, o apartamento está igual. É bom. É central. Mas não é casa.

“Estamos à espera de uma coisa definitiva, para podermos comprar as nossas coisas”, esclarece Carlos. Não é uma queixa, apressa-se a dizer. Só guarda elogios da “dra. Rubina” [Leal], e da “dra. Nivalda” [Gonçalves], que eram à data responsáveis pelos Assuntos Sociais e pela Habitação Social, e de outros, anónimos, que foram conhecendo pelo caminho. Mas queriam uma casa que pudessem chamar sua, para poderem seguir em frente.

Um convite para um almoço

Marcos Silva seguiu, o que pôde. Não contou com a ajuda de ninguém. A casa, onde vivia com a mulher Cristina e a filha de 18 meses, ardeu na zona da Pena, a dois passos do centro do Funchal. Foram-se as recordações de uma vida, e uma profissão de topógrafo que pagava as contas. As chamas consumiram a estação de trabalho, avaliada em 25 mil euros. Tem trabalhado com material emprestado, mas durante os meses que foi forçado a parar, perdeu clientes.

“Já não são assim tantos, agora ainda serão menos”, diz. Entre o dinheiro do seguro e as poupanças que tinha, gastou mais de 130 mil euros para reconstruir a casa. Não recebeu um tostão de apoio. “Recebi uma carta da câmara, a dizer que como o exterior não tinha ardido não existia interesse urbanístico na recuperação. O que me deram foi dois anos de isenção de IMI”, lamenta, dizendo que semanas depois, quando recebeu um convite da autarquia para um almoço, limitou-se a rir.

“Ninguém me deu nada. Mesmo aos meus vizinhos, só aqueles que tinham seguro é que já conseguiram recuperar”, acrescenta. Não é bem uma queixa. É uma constatação. Marcos, regressou a casa a 21 de Fevereiro deste ano, ainda com pequenas obras a decorrer. As obras de recuperação só arrancaram em Novembro, ultrapassadas as questões burocráticas colocadas pela seguradora.

Na cidade, aqui e ali, onde o fogo andou naquele terrível mês de Agosto, causando três mortos, 600 desalojados e prejuízos de 157 milhões de euros, os trabalhos de reabilitação também prosseguem. Uns mais rápidos, outros mais devagar. A história de Graça Livramento, em São Roque, onde as chamas que começaram a 8 de Agosto nasceram e cresceram, teve um final feliz. Destruída completamente pelas chamas, a habitação foi reconstruída dos alicerces, e em Julho ela e o filho puderam novamente regressar.

“É uma casa completamente nova, com mais conforto”, conta ao PÚBLICO, multiplicando-se em agradecimentos. Para o presidente da junta local, Pedro Gomes. Para o pároco da freguesia, José Luís. Para a SIC-Esperança. Para a ASA… E continua percorrendo, uma a uma as instituições e pessoas que a ajudaram a erguer-se. “Sei que ainda há pessoas à espera, e espero que encontrem um anjo da guarda como eu encontrei”, diz. Agora, acrescenta, quer viver muitos e muitos anos, num conforto que nunca tinha tido.

122 em alojamento provisório

Rubina Leal, que até há bem pouco tempo era responsável por esta pasta no governo regional —  entretanto saiu do executivo, para se candidatar à Câmara Municipal do Funchal pelo PSD —, contabiliza ao PÚBLICO seis habitações já reabilitadas, outras quatro em fase de conclusão e 30 fogos que estão a ser construídos de raiz para receber algumas das famílias que perderam a habitação.

“Tudo com fundos comunitários e com verbas do orçamento regional, já que o apoio prometido pelo governo da República ainda não chegou”, ressalva, acrescentando que o executivo madeirense está a concluir o procedimento para a aquisição de 30 habitações para as vítimas dos incêndios, cujas casas não serão recuperadas por estarem em zonas consideradas de risco.

Paralelamente, continuam a ser apoiadas 122 famílias, realojadas provisoriamente em habitações arrendadas pelo executivo no mercado privado, caso do T2 onde estão Carlos e Arlete. “Como medida de apoio, aplicamos o valor mínimo da renda social às famílias realojadas assumindo o governo custos no valor de 500 mil euros por ano relativo a rendas”, explica, dizendo que enquanto 40 famílias aguardam apoio para a recuperação das habitações — os processos foram enviados para o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana —, outras 180 receberam cerca de um milhão de euros para obras de reconstrução. “Tudo isto foi feito em tempo recorde. Em menos de um ano. A Lei de Meios, que financiou a reconstrução do pós-20 de Fevereiro [cheias], demorou sete anos.”

Noutro plano, no da prevenção, o governo começou a trabalhar na raiz do problema: a floresta, vizinha da cidade. Até agora foram intervencionados mais de 110 hectares. A ideia é arrancar eucaliptos e acácias e plantar árvores folhosas. Pelo caminho, construir um reservatório de água e rasgar a floresta com acessos florestais, apoiados por bocas de incêndios.

Escola regional de bombeiros

É também na prevenção, que a autarquia liderada pelo independente Paulo Cafôfo tem mais actuado. Além de um aumento da verba adstrita à protecção civil do concelho, o município quer os bombeiros da cidade como sapadores e prepara-se para criar uma escola regional de bombeiros.

A câmara está também a apostar em Unidades Locais de Proteção Civil, dando formação à população e adquirindo kits com material para ser utilizada pelos moradores numa primeira intervenção. Paralelamente, a revisão do PDM, em curso, propõe a redução de 14% do perímetro urbano e “repensar” as acessibilidades e centralidades.

“A autarquia também criou o Gabinete da Cidade, uma nova estrutura na sua dependência com o objectivo claro de acelerar a regeneração e o reordenamento urbano do Funchal após os incêndios”, diz ao PÚBLICO o gabinete de Paulo Cafôfo, acrescentando que a coordenação ficou a cargo dos arquitectos Paulo David e João Favila.

Enquanto se vai desenhando no papel uma nova cidade, no T2 provisório de Carlos e Arlete, a vida corre em suspenso. Vai sendo preenchida pelos passeios que a junta de freguesia promove, pelas visitas dos antigos vizinhos e pelas idas ao ginásio comunitário. “Disseram que teríamos que esperar mais um ano por uma casa definitiva”, explica Arlete. “Não faz mal. Estamos juntos, e o pior já passou.”

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