Justin Gatlin, o homem que luta contra o seu passado

O novo campeão dos 100m tem um historial de uso de substâncias dopantes e o mundo levou a mal ter sido ele a destronar Usain Bolt.

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Justin Gatlin LUSA/FACUNDO ARRIZABALAGA

Ninguém ficou confortável com o título mundial de Justin Gatlin nos 100m. Ok, ele estragou a festa de despedida de Usain Bolt, um homem de proezas atléticas e carisma inigualáveis, mas se fosse qualquer outro a bater o relâmpago jamaicano – Yohan Blake, um compatriota ou o novato americano Christian Coleman – o desconforto seria passageiro e celebrar-se-ia o novo campeão. Só que não foi Blake, nem Coleman, e não houve propriamente o que se pode considerar uma passagem de testemunho, porque ele não irá ficar muito tempo no trono. Foi Gatlin, em quem o mundo vê a palavra batoteiro escrita na testa.

 O mundo foi bem audível a confrontar Gatlin com o seu passado de uso de substâncias dopantes que lhe valeu duas suspensões. Foi assobiado a cada vez que esteve na pista do estádio olímpico de Londres, fosse para correr ou para receber a medalha de ouro – a cerimónia de entrega de medalhas do hectómetro foi, aliás, antecipada 70 minutos, das 20h para as 18h30, dez minutos antes de começar a jornada da tarde, quando ainda está pouca gente no estádio. E o próprio Sebastian Coe, presidente da Federação Internacional de Atletismo, também confessou que Gatlin não era o campeão que desejava. “Não vou estar aqui a fazer muitos elogios a alguém que esteve suspenso duas vezes e que sai daqui com um dos nossos prémios mais cintilantes”, admitiu Coe à BBC, antes de ser ele próprio a colocar a medalha ao pescoço de Gatlin e apertar-lhe a mão.

Mas quem é Gatlin e o que é que ele fez para projectarem nele uma imagem de batoteiro? O nova-iorquino é uma fénix renascida duas vezes, já vai no seu terceiro fôlego competitivo, depois de ter sido duas vezes suspenso por uso de doping. Primeiro, foi ainda em início de carreira, aos 19 anos, quando era uma grande promessa da velocidade internacional, pelo uso de anfetaminas, mas Gatlin conseguiu anular a suspensão com o argumento de que era um medicamento que tomava desde criança para combater o défice de atenção. Depois, foi em 2006, já era ele o homem a abater na velocidade, com um título olímpico e dois títulos mundiais no bolso. Treinado pelo infame Trevor Graham, Gatlin acusou níveis anormais de testosterona e recebeu uma suspensão de oito anos, que viria a ser reduzida a quatro. Manteve as medalhas, mas o seu recorde mundial de 9,77s (a par de Asafa Powell) foi riscado das listas.

Ao contrário de outros velocistas que foram apanhados no doping e que não voltaram a competir (Tim Montgomery ou Marion Jones, ambos recordistas dos 100m), Gatlin cumpriu as suas penas e voltou às pistas. Mas quando voltou em 2010, o trono da velocidade já tinha dono, um jamaicano exuberante e carismático chamado Usain Bolt. E foram sete anos a ficar sistematicamente atrás dele. Gatlin reapareceu em grande no circuito e nas grandes provas, ganhou seis medalhas, mas nenhuma de ouro. Em 2015, conseguiu no Qatar aquele que vai valendo como o seu recorde pessoal nos 100m, 9,74s, longe do recorde mundial de Bolt (9,58s), mas que fizeram dele o quinto mais rápido da história. Mas a sua melhor forma de sempre não serviu para bater Bolt nos Mundiais de 2015. Perdeu pela mais curta das margens, 0,01s.

Em Londres, Gatlin confirmou definitivamente o seu renascimento competitivo, 12 anos depois de ter sido bicampeão mundial em Helsínquia, um hiato de títulos nada comum no desporto de alta competição. Mas foi essa energia de 2005 que Gatlin usou, como contou ao PÚBLICO, na zona mista do estádio após a corrida. “Este ano aproveitei algum tempo para pensar no sucesso que tive em 2005 e na forma como eu corria. Não me preocupei com tempos, não me preocupei se chegava aos 9,70s ou se batia o recorde do mundo. Em nada disso. Só queria entrar na pista e agarrar a corrida. Foi o que fiz aqui. E viram um bocadinho do Justin de 2005. A divertir-se, focado na corrida, a olhar apenas para a sua pista e a trabalhar no duro”, disse o norte-americano.

Se o mundo despreza Gatlin por ser um ex-batoteiro e por ter estragado a festa de despedida de alguém que é imensamente mais popular que ele, Portugal também não tem grandes memórias dele. Foi Gatlin que “roubou” o título olímpico dos 100m a Francis Obikwelu em Atenas 2004 por apenas um centésimo. Gatlin, claro, não se esqueceu dessa final, nem do velocista luso-nigeriano: “É um grande atleta, basta olhar para o que ele fez por Portugal (obviamente que sabes o que ele fez). Esta corrida foi um bocado uma imagem dessa final de 2004, em que ele foi um segundo classificado muito próximo de mim. Ele é um bom tipo, tenho-o visto ao longo dos anos, mesmo depois de se retirar.”

No programa de Gatlin, ainda estão os 200m (onde não estará Bolt) e os 4x100m (onde estará a Jamaica de Bolt). Mas depois dos Mundiais de Londres, o que vai fazer o novo/velho campeão da velocidade? “Ainda tenho de dormir sobre o assunto. Faz-me essa pergunta amanhã e eu digo-te. Agora tenho de ir.”

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