O marketing da “floresta ordenada” e o direito fundamental a um ambiente equilibrado

Fala-se em proibir novas plantações de eucalipto. Mas de pouco servirá proibir quando se constata que a espécie é disseminada ou espalhada pelo próprio fogo.

A reforma florestal iniciada por Salazar através do Decreto 13.658 de 23 de Maio do longínquo ano de 1927 – vai para 100 anos – impunha uma distância de 20 metros entre as plantações de eucalipto e os terrenos de cultivo. Restrição que em 1937 foi ampliada pela Lei nº 1.951 de 9 de Março do mesmo ano, com a proibição da plantação ou da sementeira de eucaliptos ou de acácias a menos de vinte metros de distância de terrenos cultivados e a menos de quarenta metros de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e prédios urbanos, salvo se entre umas e outras mediasse curso de água, estrada ou desnível de mais de quatro metros. Apesar dos vários diplomas posteriormente surgidos, estas restrições mantiveram-se até 2013, quando um decreto providencial – o Decreto-Lei nº 96/2013 de 9 de Julho – revogou todos os anteriores diplomas que previam distâncias de salvaguarda para o plantio do eucalipto e outras espécies, como a acácia mimosa ou ailanto.

Na altura, a preocupação era a protecção da produção. Mas a principal questão que hoje se põe é outra. Na verdade, ela prende-se com o direito de cada português a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, direito que é constitucionalmente tutelado no art.º 66 da CRP do seguinte modo: (Ambiente e qualidade de vida)

1. Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.

2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:

a) […].

b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;

c) […]

d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações; […].

Fala-se agora em proibir novas plantações de eucalipto. Mas de pouco servirá proibir quando se constata que a espécie é disseminada ou espalhada pelo próprio fogo. A sua multiplicação faz-se por geração espontânea, pelo que, paradoxalmente, são os incêndios que têm ajudado decisivamente ao seu alastramento. Ou seja: trata-se de uma praga (tal como a acácia dealbata ou mimosa). Ora nunca qualquer praga poderá ser vista como uma riqueza nacional. Por ser uma praga é que acabou por dominar de forma quase absoluta e exclusiva as antigas áreas de pinhal do norte e centro do país que nas últimas quatro décadas foram fustigadas pelos incêndios. Além de vastas extensões do interior, ocupa hoje uma faixa praticamente contínua que começa ainda a norte do distrito do Porto e se prolonga até sul do distrito de Coimbra e que não andará longe dos duzentos quilómetros de comprimento. Ninguém contesta que alcança todas as reservas de água existentes no subsolo, havendo quem estime em dezenas de litros a quantidade de água que uma árvore adulta pode consumir diariamente. Não é preciso ser um grande matemático para calcular a água que já terá sido absorvida por cerca de um milhão de hectares de eucaliptos (número que, aproximadamente, constituirá já a área da sua implantação no nosso País). O seu crescimento nos solos mais húmidos e férteis do litoral é vertiginoso. Adivinha-se, assim, o que, com o aquecimento do clima, irá acontecer aos solos agrícolas adjacentes.

Uma outra consequência, que já pode ser confirmada por qualquer um, é a eliminação de toda a vida animal no interior dos povoamentos exclusivos de eucaliptos. Como está hoje cientificamente demonstrado – e é claramente explicado pelo Eng. João Camargo num assertivo artigo publicado na Revista Visão de 10.10.2013 – os químicos libertados pelas folhas desta árvore inibem o crescimento dos microrganismos que são suporte de toda a vida animal, bem como impedem o desenvolvimento de outras plantas, dessa forma actuando como um poderoso factor anti-vida. São, assim, afastados não só todos os pequenos invertebrados – que são a base de uma extensa cadeia alimentar do mundo animal – como também os insectos, sabendo-se como se sabe que estes que podem desempenhar uma função vital para a agricultura (p. ex. com a polinização).

Uma tal tragédia ambiental desenrola-se perante a apatia ou passividade de governantes, autarcas e populações. Com a cavalgada silenciosa da mancha florestal ocupada pelo eucalipto, p. ex., no distrito do Porto, concelhos como Gondomar, V. N. de Gaia, Maia, Valongo, Paços de Ferreira, Paredes, Lousada ou Santo Tirso viram plenamente consumada a hecatombe dos seus ecossistemas. Nesses concelhos, a mancha mais ou menos contínua de muitos quilómetros quadrados de eucaliptal que hoje muito facilmente pode ser observada dizimou toda a vida animal selvagem que ali pré-existia. Entre muitas outras, desapareceram do seu interior aves outrora aí vulgares como o papa-figos, o cuco, o pica-pau, a tordoveia ou o tentilhão. Porém, quem vive nos polos urbanos ou urbanizados só parece ter acordado para o impacto mediático dos incêndios, quando se apercebeu da omnipresença do eucalipto nos maiores fogos do país.

A ideia de um combate eficaz aos incêndios nas monoculturas de eucalipto é também uma falácia. Sabe-se com segurança – ainda de acordo com o autor acima referido – que, ao arder, a casca incandescente da árvore pode ser projectada até centenas de metros em função da intensidade do vento. Como é evidente, a ser exacta esta sinistra particularidade (que até agora ainda não vi negada), é também ilusória qualquer garantia de travagem do fogo que venha a ocorrer nas áreas de monocultura, sem embargo do uso dos mais sofisticados dispositivos de comunicação. Essas áreas, se alcançadas pelo fogo, ainda que limpas e ordenadas”, funcionarão sempre como grandes depósitos de gasolina. Não custa, portanto, admitir que, mais cedo ou mais tarde, um cenário de descontrolo total aí se possa verificar.

Está agora, no entanto, em fase de charme o apelo à chamada “floresta ordenada”. Mas é de temer que isso signifique sobretudo “eucaliptal ordenado”. O eucaliptal contínuo mais “bem ordenado” irá ser apenas o “grande deserto ordenado”, monocromático, agradável à vista porque inicialmente pintado de verde. Só que marcará, por certo, o fim da biodiversidade, e, mais tarde ou mais cedo, de muitas formas de vida. No Brasil, em regiões como Maranhão, Minas Gerais, São Paulo, Piauí, Bahia e Mato Grosso do Sul, são já visíveis os efeitos das gigantescas extensões de eucaliptal na agricultura, nomeadamente na escassez de água que delas resultou. O risco de incêndio no solo é aí “prevenido” mediante a utilização de perigosos herbicidas como o glifosato. Infelizmente, contribuindo para a desinformação geral, alguns técnicos ambientais, engenheiros florestais e até académicos – que poderiam colaborar com o Estado se a Direcção Geral das Florestas não tivesse sido extinta – não se coíbem de abdicar da sua honestidade intelectual, aparecendo agora a emitir juízos aparentemente científicos na defesa acérrima do dito “eucaliptal ordenado”. É hoje, finalmente, bem evidente que a estratégia económica salvadora do país passa antes pela escolha de modelos agro-florestais defensivos do aquecimento global, amigos da vida em geral, com culturas e espécies mais resistentes às elevadas temperaturas de que, no futuro, muito dificilmente escaparemos. Tem de centrar-se no apoio público ao conhecido mosaico agro-florestal mediterrânico que inclui corredores sem combustível, gerados por fogo vigiado durante o período invernal. É este um caminho alternativo aos modelos baseados no crescimento rápido e na produção intensiva. É certo que os incentivos a este modelo implicarão o empenhamento do Estado na canalização de estímulos económicos aos proprietários. O montante de tais estímulos será, contudo, bem inferior ao da despesa que o Estado suporta todos os anos com o combate aos fogos. E também por essa via o Estado realizará o direito fundamental de todos a um ambiente seguro e equilibrado, direito que, inscrevendo-se no âmbito dos denominados direitos difusos, não tem vedada a respectiva tutela no plano individual (art.º 40, nº 4, da Lei de Bases do Ambiente).

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