Levar o Parlamento a sério

Na sua maioria, dentro das condições em que exercem o seu mandato, os deputados têm desempenhado o seu mandato com dignidade.

Na voragem da actualidade passou despercebida a peça jornalística “Parlamento prepara reforço de meios para a UTAO”, da autoria de Sérgio Aníbal no PÚBLICO, notícia reveladora da forma rudimentar como a democracia ainda funciona em Portugal. É certo que há eleições periódicas para os órgãos de soberania, as quais têm decorrido sem nota de irregularidade. Só que — e sem fazer qualquer aproximação à defesa de míticos processos de democracia participativa e directa — a democracia não se resume a eleições. Um Estado democrático é aquele em que a administração central e local serve os cidadãos, mas também em que os órgãos de soberania têm condições de desempenhar o seu mandato de representação. Ora, em Portugal, o órgão de soberania porventura que mais exprime a essência da representação democrática, a Assembleia da República (AR), não tem sido dignificado como deveria.

Fui repórter parlamentar do PÚBLICO durante dez anos (1995-2005), antes disso e depois acompanhei e acompanho a actividade da AR. Nessa década, pude ver por dentro e quotidianamente como funcionava então o Parlamento e como havia — e sei que continua a haver — deputados entusiastas da política parlamentar, intérpretes do seu mandato de legisladores e de fiscalizadores da actividade dos governos, dedicados até ao limite da resistência física, entregando-se ao cumprimento da missão de representação popular. Vi-os em todas as bancadas, prova de que a seriedade na interpretação do mandato representativo não é limitada pelas cores partidárias e exclusiva deste ou daquele posicionamento ideológico. Pelo que conheci directamente e pelo que acompanho desde então, tenho em alta consideração vários dos actuais e anteriores deputados.

É verdade que assisti ao longo dos anos a casos de deputados relapsos, que apenas passam por São Bento para fazer currículo partidário e profissional. Sei até de alguns que apenas aceitaram candidatar-se para poderem beneficiar do prestígio que o mandato electivo lhes dava e/ou para fazerem lobbying usando como sala de visitas os corredores dos Passos Perdidos. Mas, na sua maioria, dentro das condições em que exercem o seu mandato, os deputados têm-no desempenhado com dignidade. Alguns mesmo dedicaram a sua vida ao Parlamento e são ou foram essenciais para o funcionamento da democracia em Portugal.

Outra coisa é a dignidade com que o Estado e, neste caso, o Parlamento dignificam o trabalho dos seus deputados e lhes dão condições de poderem desempenhar plenamente o seu mandato. É aqui que esta notícia de Sérgio Aníbal é paradigmática. Durante décadas, os deputados portugueses tiveram de cumprir os seus mandatos sem terem quase apoio técnico para as suas funções. E em muitíssimos casos têm ainda. Viveram e vivem do seu saber especializado — sobretudo em Direito — e da sua vontade. O modelo que foi e é utilizado assenta, sobretudo, no apoio de assessores dos grupos parlamentares, alguns de grande qualidade, mas contratados por confiança partidária (têm, aliás, um estatuto híbrido que os transforma em trabalhadores diminuídos nos seus direitos laborais). As comissões parlamentares têm funcionários técnicos de apoio, integrados nos quadros da AR e fora do âmbito partidário, mas a sua escassez é confrangedora.

Exemplo disso é o caso da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) referida por Sérgio Aníbal. Foi criada em 2006 para dar apoio técnico — e não político — aos deputados de todos os partidos em assuntos de finanças públicas e de economia. Em 2010, o número de técnicos que enquadram este serviço foi aumentado para um limite de entre oito e dez, mas continua a funcionar ainda hoje com seis. Perante o engarrafamento de pedidos com resposta atrasada, a Comissão Parlamentar de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa finalmente pondera a transferência de funcionários dentro do Estado para preencher os lugares em aberto. Saúda-se a decisão, embora tardia e insuficiente para as necessidades de um Parlamento que leve a sério o papel que lhe cabe em democracia.

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