Repondo os factos

Na minha opinião, o processo que liderei mostra a coerência entre o que escrevo e o que faço.

No artigo intitulado “O que separa o ministro e o sociólogo Augusto Santos Silva”, da autoria da jornalista São José de Almeida, publicado no dia 29 de julho p.p., sustenta-se que no capítulo do livro “Fraude em Portugal”, de que sou co-autor, se encontra “a prova” de que “o [meu] discurso muda”, consoante fale na qualidade de ministro ou na de sociólogo, relativamente aos conflitos de interesses e à ética do serviço público. Há um ano, falando pelo Governo e a propósito do caso das viagens de três secretários de Estado a um jogo da seleção nacional de futebol, teria dito uma coisa. “Agora”, “embora [...] o caso concreto das viagens nunca seja citado directa ou indirectamente”, diria outra.

Este “agora” tem que se lhe diga. Seria impossível referir-me a esse caso concreto, pela simples razão de a redação do texto ser anterior à ocorrência desse mesmo caso. O PÚBLICO não é obrigado a estar a par dos ritmos de publicação de livros universitários. Mas bastava ter-me perguntado para ficar de posse desta informação e evitar um erro factual elementar. Por algum motivo há-de recomendar o Código Deontológico dos Jornalistas que se ouçam as partes com interesses atendíveis antes de elaborar notícias que lhes digam respeito.

Adiante. A jornalista respiga umas tantas passagens do capítulo de que sou co-autor, para sustentar que considero que o dever de isenção é um dos deveres fundamentais de um agente público — o que é verdade pura — e que esse dever “claramente” impede “o tipo de comportamento assumido pelos três secretários de Estado ao terem beneficiado de viagens a convite da Galp” — o que é conclusão sua, a meu ver contestável, mas que em nada se retira do referido capítulo.

Não percebo, pois, como se pode dar por “provado” que eu mudei de opinião, ou que digo como sociólogo o que desdigo como ministro. Conheço bem os deveres dos agentes públicos, que foram sistematizados no nosso ensaio; como conheço o tipo de crime de recebimento indevido de vantagem, patrimonial ou não. E sei bem que estas e outras disposições são essenciais para evitar conflitos de interesses e promover a ética do serviço público. Saber se este ou aquele comportamento viola a ética ou a lei é outro ponto, que só pode ser discutido em relação a esse concreto comportamento.

No caso em apreço, sustentei (e sustento) que os membros de Governo e outros agentes políticos que participaram numa ação de apoio à seleção nacional de futebol, custeada por um dos patrocinadores desta, tiveram uma conduta conforme à lei, que expressamente legitima a aceitação de convites por deveres de cortesia ou conformes aos usos sociais correntes. Foi isso que disse, em nome do Governo, em 2016. Compete à Justiça, que entretanto decidiu intervir em sede penal, determinar se houve ou não ilícito.

Quanto à questão ética, também disse então que o pagamento das viagens pelos três governantes mostrava a sua boa-fé e que, havendo contudo dúvidas, o Governo se ia autovincular a um código de conduta que, entre outros pontos, estabeleceria um critério quantitativo inequívoco para distinguir o que era ou não pessoalmente aceitável.

Tudo isto, o que disse e o que fiz como governante, é evidentemente criticável. Posso ter, como creio, razão; e posso não ter. Mas não significa nenhuma contradição com a análise sociológica e jurídica que co-assinei. Só o seria, aliás, se eu tivesse afirmado que os membros do Governo estavam dispensados dos seus deveres, pudessem não ser isentos ou receber, por causa dos seus cargos, vantagens indevidas.

Na minha opinião, o processo que liderei, com a aprovação do já mencionado código de conduta, testemunha a importância que concedo às questões éticas no exercício de funções públicas e mostra, portanto, a coerência entre o que escrevo e o que faço. Mas esta é, evidentemente, apenas a minha opinião, vale o que vale. Coisa diferente é poder aceitar que o PÚBLICO dedique duas páginas inteiras, com chamada de capa, a dar por demonstrada uma contradição entre “Santos Silva ministro” e “Santos Silva sociólogo”, sem qualquer elemento factual ou argumentativo de suporte.

O Santos Silva “tout court” tolera relutantemente, como uma das regras do jogo político-mediático, a ligeireza com que se esgrimem opiniões e se fazem avaliações sumárias. Não está, porém, disposto a aceitar a aplicação da mesma ligeireza ao conhecimento e ao debate científico. Porque perderíamos de vez aquele que é um dos poucos domínios do espaço público onde se continua a exigir mais do que ler apressada e preconceituosamente textos e ignorar olimpicamente factos. E, se perdêssemos, todos ficaríamos mais pobres.  

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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