O grito de Mário Lúcio traz a história do funaná

Terminados os seus anos de ministro da Cultura de Cabo Verde, voltou aos discos a partir de um grito de libertação que lhe trouxe o eco das primeiras memórias musicais. Funanight segue as pistas desse primeiro contacto com o funaná.

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Funanight começa com a necessidade de um grito de libertação que Mário Lúcio tinha preso na garganta no momento de largar o Ministério da Cultura em 2016

À casa de Mário Lúcio, bem no final da Achada Mato, quando já não há mais estrada para onde ir, chegam às vezes três e quatro camadas de som que se confundem no ar da noite. Achada Mato é um dos bairros mais pobres da Cidade da Praia, lugar onde o músico e ex-ministro encontrou o seu refúgio quando começou a procurar sítios um pouco mais longínquos onde se instalar. “Aconteceu-me viver ali porque não gosto de cidades”, justifica. “Nasci no Tarrafal, cresci lá até aos 14/16 anos, depois fui para a cidade estudar, mas a minha natureza é muito rural.” Dada a sua condição periférica, a Achada Mato, habitada sobretudo por aqueles que chegam do interior da ilha de Santiago para trabalhar na capital e tentar melhorar condições de vida muito precárias, goza do pulsar próprio destes meios, onde é sabido que muitas das mais fascinantes linguagens musicais urbanas fervilham e esticam os limites da cultura popular.

Na Achada Mato borbulha, por exemplo, o cotxi pó, um fenómeno actual e novo do funaná, importador de linguagens ocidentais e africanas para o género cabo-verdiano, no meio de um bairro “onde estão a nascer todos os dias as melhores músicas urbanas, os pequenos home studios, os grandes movimentos de hip-hop”. Tudo isto invade o silêncio nocturno e se mistura no ar que chega até à casa de Mário Lúcio que diz, deliciado, dar por si a ouvir hip-hop sobreposto a Bach, cotxi pó a acompanhar acidentalmente Philip Glass. Talvez se não fosse essa experiência de músicas a entrecruzar-se e a sugerir mestiçagens inimagináveis, talvez se não fosse isso não pudesse haver Funanight. Ou, pelo menos, o novo álbum do ex-ministro da Cultura não fosse tão longe nas suas propostas a partir do funaná e não fosse tão sincero nessa polifonia de vozes e géneros que ali se juntam.

Funanight começa com a necessidade de um grito de libertação que Mário Lúcio tinha preso na garganta no momento de largar o Ministério da Cultura no final do mandato em 2016. “Foi como se tivesse sido alforriado e esse sentimento é muito forte”, descreve ao Ípsilon. “Porque fiz bem o meu trabalho, tinha cumprido a minha missão e estava a entregar inteira uma loiça que me foi dada para cuidar, depois que a entreguei foi uma sensação de liberdade enorme e até de libertação espiritual.”

Foi então que, possivelmente por sugestão de um funaná que nasceu com o final da escravatura e tem em si uma natureza libertária, se viu assalto pelo eco distante de um acordeão que ouviu em 1970 ou 71, que identifica como o seu chamamento primordial para a música. “Tinha seis anos quando, um dia, fui buscar água às alfândegas, onde trabalhava o meu pai, e a meio do caminho, uns dois quilómetros, ouvi um som”, recorda. “Quando olhei para a direita estava um senhor a tocar acordeão diatónico, sentado no portão de um amigo, e eu entrei em transe. Fiz uma viagem longa em segundos. Fiquei parado na estrada – ainda bem que na altura só havia um carro no Tarrafal – e aconteceu qualquer coisa, um chamamento. Aquilo tocou-me e nem sabia que existia. Não havia rádios nem toca-discos onde eu morava e só então ouvi pela primeira vez um instrumento ao vivo.”

Foi para esse momento e essa impressiva recordação que Mário Lúcio foi atirado na altura em que deixou o governo. Daí que, embora não faltasse quem o aconselhasse a lançar um best of ou um disco de duetos – com Gilberto Gil, Milton Nascimento, Harry Belafonte, Césaria Évora e outros –, o músico soube que aquilo que tinha de fazer era pegar nessa ponta do novelo das suas memórias musicais, identificada com o funaná, e ir atrás das pistas que a pesquisa lhe trouxesse. “Cerca de 42 anos depois daquele dia, senti que tinha chegado o sopro, o eco daquilo que andou a viajar e voltou a soar em mim. Era o momento de fazer um disco sobre a minha memória do funaná, como se fosse um percurso enorme, da aldeia até ao cosmos da realização das coisas”, diz. E lembra-se de pensar para si: “Eu quero é gritar, quero romper, quero surpreender com coisas de que nem eu mesmo me julguei capaz.”

Nessa altura, voltou os ouvidos e a cabeça para os 22 anos de pesquisa de funaná que vinha desenvolvendo, desde os tempos do grupo Abel Djassi ou da fundamental banda da música cabo-verdiana que foram os Simentera. Só que todo esse estudo tinha sido movido por uma curiosidade natural, por um interesse em abordar o género e nunca por uma vontade de documentar ou chegar até às raízes.

Andar para trás (e para a frente)

A noção que havia um caminho para trás que precisava percorrer para chegar a Funanight chegou na altura em que juntou as peças das suas pesquisas anteriores e, ao olhar o todo, percebeu que havia umas quantas peças em falta. Nas consultas ao arquivo nacional de Cabo Verde, onde “há muito pouca documentação sobre a história da música” local, o que faz com que seja impossível afirmar com exactidão a origem de músicas como a morna, a coladera ou o funaná, era óbvio que essa falta de respostas o interpelava directamente. “Porquê o funaná, porquê este nome, porque se toca assim, de onde vieram estas influências, tocava-se em todas as ilhas ou não?” Todas perguntas para as quais não encontrava explicações definitivas e convincentes.

Na ausência de uma documentação abundante, Mário Lúcio escolheu a pista inicial que lhe parecia mais sólida: o acordeão diatónico (chamado “gaita” em Cabo Verde, e instrumento central no funaná). Recuando até à sua origem em Paris, em 1865, a pesquisa de devolveu-lhe a constatação de que “marinheiros cabo-verdianos, juntamente com açorianos, partiram para a pesca da baleia e foram encontrar o acordeão diatónico no outro lado do Atlântico, no Massachussets e em New Orleans, nos Estados Unidos”. “Como era de fácil transporte, de fácil manuseamento e concebido expressamente para festas, foi adoptado pelos marinheiros.”

Como é evidente, o instrumento não lhes chegou virgem, trazia já consigo uma música folk irlandesa e escocesa, acrescida de melodias vindas das plantações de algodão americanas, mais as polkas, as marchas e as valsas adaptadas pelos europeus do reportório do acordeão cromático. No regresso a Cabo Verde, os marinheiros haviam de passar pelo porto de Durban, na África do Sul, “um dos mais importantes portos da marinha mercante na altura” e confrontar-se com a música que os holandeses também ali tinham plantado. Daí que o acordeão chegue às ilhas já carregado de músicas várias, que o funaná agrega, e que irão adquirir uma linguagem de explosão na altura em que se dá a abolição da escravatura no país. Foi farejando estas pistas que Mário Lúcio descobriu as peças em falta para a criação de Funanight, deslocando-se para gravações à África do Sul, a Cuba e a França, no reconhecimento de que “o funaná também é viagem e contém vários lugares do mundo – levámos o funaná a muitos sítios, mas trouxemos e o funaná também de muitas partes”.

A dimensão nocturna do funaná que o título oficializa liga-se também à história de um género que, sendo o terceiro género popular nascido na Ilha de Santiago, sucedeu: ao batuco, percutido no corpo e “dança de sedução das mulheres em que os homens ficavam a olhar”; e à tabanka, tocada por búzios e tambores, com uma tímida aproximação, sem contacto, à dança entre os dois géneros. O aparecimento do funaná, ligado ao fim da escravatura, traz também uma “liberdade sexual e um género que é pela primeira vez dançado a pares, libertário em termos físicos, um grito de soltura e o ritmo que tem mais a essência do que é o crioulo – porque tem uma dose das heranças africanas, europeias e americanas numa só música”.

Só que, como Mário Lúcio frisa, Funanight não é simplesmente um disco de homenagem aos criadores de funaná que o precederam. Na verdade, diz, ele não faz “um disco com funanás, mas sobre o funaná”. E tal como antes o funaná se transformou frequentemente acompanhando algum acontecimento social – “a época da plantação, a pré-independência, o pós-independência” –, em que foi adquirindo características diferentes, também aqui o músico arrisca aqui pontes com o heavy metal (fortemente fixado em Cabo Verde) ou com o reggae, através de uma versão de Who the cap fit, de Bob Marley.

Nandinha veste-se de um especial simbolismo ao juntar o rei do funaná Zeca di nha Reinalda, dos históricos Bulimundo, ao guitarrista de heavy metal Sori Araújo, unindo duas gerações que pouco se descobrem. “O fenómeno musical em Cabo Verde”, diz Mário Lúcio, “é dos raros no mundo que conheço onde as pessoas não sabem fazer nada se não tiver uma raiz. Só que os jovens que compõem em crioulo não tiveram oportunidade de tocar com os mais velhos e não dominam muitos dos ritmos tradicionais.” Ao pesquisar o passado, não podia, ainda assim, deixar de perspectivar o futuro.

Ainda assim, é sobretudo em Tema de mininis funaná, Funanight, Caoberdiano barela ou Cutelo baxo que Funanight guarda o seu mais intenso feitiço musical, mostrando uma nova vida para um criador que sempre foi tido como etéreo. “Mas olha”, ri-se Mário Lúcio, “olha como os pés estão bem assentes no chão.”

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