Problemas informáticos geram pandemónio no cartão de cidadão

Milhares de pessoas confrontaram-se nas últimas duas semanas com tempos de espera de cinco e seis horas nas repartições. Ministério da Justiça diz que questão está resolvida, mas não adianta data de regresso à normalidade.

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Muitos dos computadores e do software usado nos serviços não são sequer compatíveis com as novas versões dos programas informáticos, acusa sindicalista Mário Lopes Pereira

O casal de emigrantes olha para a pequena senha que tem na mão. Como calcularam mal o tempo de espera — tinham tanta gente à frente que decidiram ir dar uma volta —, o papelinho que lhes custou várias horas em frente dos balcões de atendimento para renovar o cartão de cidadão tornou-se inútil, e nenhum dos dois sabe bem o que fazer agora. “Temos de vir dormir para aqui esta noite, doutra forma não dá”, ironiza ela, antes de se irem embora.

O problema não é exclusivo deste casal, ele técnico de serralharia e ela ainda à procura de trabalho no Luxemburgo. A 18 de Julho uma actualização informática necessária à entrada em vigor, a 1 de Outubro próximo, de alterações ao funcionamento do cartão de cidadão — que passa a ser obrigatório a partir dos 20 dias de vida do bebé, por exemplo, mas só fica a ser preciso renovar de dez em dez anos a partir dos 25 anos de idade — desencadeou o pandemónio em várias repartições do Instituto dos Registos e Notariados de vários pontos do país. “Foram três ou quatro dias infernais”, descreve o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado, Arménio Maximino, explicando que apesar de a maioria das queixas vir de Lisboa e arredores também teve notícia de problemas no Algarve.

Segundo o Ministério da Justiça, o sistema voltou à normalidade ainda durante o mês de Julho, mas à acumulação de serviço gerada pelos problemas de meados do mês passado juntaram-se novos contratempos informáticos, sem relação com os primeiros, que se estenderam a todo o país nos últimos dias, regiões autónomas incluídas.

Na segunda-feira, o casal vindo do Luxemburgo chegou à repartição da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, às 10h38. Seis horas mais tarde perceberam que não deviam ter saído, para aproveitar o tempo de espera, porque enquanto estiveram fora houve tanta gente a desistir de ser atendida que a sua vez passara havia mais de 30 números.

Cruzou-se com eles outro utente, que viu a espera recompensada com a promessa de que lhe enviarão o código para levantar o cartão daqui a dez dias. “Mas também me disseram que pode demorar um mês”, relatava, tentando controlar a irritação. “O que fiz durante estas quase seis horas?! Meditei!”, atirou este gestor de web, antes de disparar: “Isto é inaceitável! Inacreditável! Parece que recuámos 30 anos no tempo. E quando vier buscar o cartão renovado ainda me arrisco a uma espera do mesmo género.” E saiu do edifício com brusquidão: “Peço desculpa, mas preciso mesmo de ir arejar.”

Na sexta-feira, na repartição do Campus da Justiça, também em Lisboa, houve quem tivesse tido de ali ficar duas horas só para levantar o documento. “Cheguei às 18h30 e tinha somente... 220 pessoas à minha frente”, relata um desses utentes, que pagou 35 euros em vez dos habituais 15 para renovar o cartão com urgência, em 24 horas. “A contrapartida era esperar um mês, como me disserem no local várias pessoas.”

Um dos funcionários da segurança da Fontes Pereira de Melo conta que os piores dias foram mesmo os primeiros quatro a seguir à actualização informática do dia 18, em que o sistema “mal mexia”. Mas ainda na segunda-feira “foi abaixo duas vezes, uma de manhã e outra à tarde”.

“Há alturas em que está tão lento que é preciso quase meia hora para atender uma pessoa”, descreve.

Nas instalações da Loja do Cidadão das Laranjeiras o cenário é idêntico, e na de Marvila o mesmo. “Tirei a senha às 10h42 e já ia no número 173”, explica uma contabilista à porta da loja das Laranjeiras, Liliana Ferreira. Seis horas não foram suficientes para chegar a sua vez. Lá dentro, os funcionários resguardam-se da confusão como podem: nas traseiras de cada terminal de computador afixaram avisos a pedir aos utentes para não interromperem os atendimentos que estão a fazer. Há crianças a brincar no chão já dentro do perímetro delimitado pelas baias de segurança que delimitam o espaço de atendimento.

Senhas acabam ao almoço

Nestas duas semanas a afluência de utentes tem levado os encarregados dos serviços a cancelar a distribuição de senhas logo à hora de almoço ou, nos dias melhores, ao início da tarde.

A filha de Ana Prata, uma professora universitária emigrada na Califórnia, ainda está na rua, à espera com a mãe. Tiveram sorte, quando chegaram já não havia senhas mas um homem que já não podia esperar mais tempo, e teve de sair antes de ser atendido, deu-lhes a vez. “Nesta Loja do Cidadão não há um dia bom. É sempre mau”, responde um funcionário quando lhe perguntam quando será melhor ali voltar.

Criticando o facto de o Ministério da Justiça ter escolhido um período de férias, em que há mais afluência de público e simultaneamente menos funcionários, para levar a cabo uma actualização informática generalizada, Arménio Maximino explica que muitos dos terminais de computador e do software usado nos serviços não são sequer compatíveis com as novas versões dos programas. “É como querer que um Ferrari apresente bom desempenho numa estrada de terra batida cheia de buracos”, compara. “Temos um parque informático completamente obsoleto. Além disso, faltam 1352 trabalhadores nos serviços, de acordo com o mapa dos postos de trabalho do próprio Instituto dos Registos e Notariado”, prossegue. São questões que fazem parte do caderno de encargos que o sindicato leva hoje à ministra da Justiça, com quem se reúne ao início da tarde.

O Ministério da Justiça diz que enquanto nos restantes meses os pedidos diários de cartão de cidadão rondam os oito mil a 8500, no Verão, com muitos emigrantes em Portugal, chegam aos 15 mil. Mas garante que os problemas informáticos se encontram solucionados, muito embora os tempos de espera continuem por enquanto a ser superiores ao habitual, “pela afluência de pedidos que ficaram pendentes nos dias anteriores e pelo período especial de férias e visita de emigrantes”.

Assessores da Secretaria de Estado da Justiça foram nesta terça-feira a algumas repartições verificar se o sistema tinha, de facto, voltado à normalidade. Entretanto, há quem já se tenha resignado a andar com o cartão caducado depois de ter corrido vários balcões sem conseguir ser atendido.

À cautela, o ministério não se comprometeu com uma data: prevê a normalização da situação “no mais curto espaço de tempo”.

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