Em Mértola falta água para tudo, até mesmo para amassar o pão

A total secura que atinge furos, charcas e ribeiras em grandes extensões do território alentejano coloca os criadores de gado em situação dramática, obrigados a percorrer dezenas de quilómetros à procura de água.

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O Alentejo tem sido particularmente fustigado pela situação de seca extrema que se vive no país Rui Gaudêncio
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Vales Mortos é o nome de uma pequena aldeia no limite do concelho de Serpa que partilha uma realidade comum há muitos séculos no interior sul alentejano: terras pobres, improdutivas, mais dadas à criação de gado, com problemas que se agudizam em anos de seca severa ou extrema. E é o ponto de partida para um itinerário por umas das regiões mais flageladas pela seca. Para onde quer que se olhe, apenas surgem grandes extensões de terra despidas de vegetação. O verde das árvores que pontuam o território, com destaque para as florestações de pinheiro manso, já no concelho de Mértola, não basta para disfarçar a secura. Só a esteva, a última barreira à desertificação do solo, pela sua robustez e capacidade de sobrevivência em solos pobres e sem água, resiste. 

Quanto mais se caminha para sul mais se acentuam os sinais da seca. Em Monte Vale Pereiro, na freguesia de Corte do Pinto, Mértola, José Almeida reparava a vedação de uma herdade onde era visível uma charca ainda com água. “Só está cheia porque a água não é utilizada.” Mas onde há gado, o caso “está complicado”, sobretudo no interior do concelho de Mértola, onde o relevo do terreno não facilita a retenção da água, explica o agricultor.

Chegados a S. Miguel do Pinheiro, freguesia que faz fronteira com a região algarvia, as consequências da escassez de água acentuam-se. António Peleja, presidente da União de Freguesias de S. Miguel do Pinheiro, S. Sebastião dos Carros e S. Pedro de Solis, diz que a população já está a ser abastecida de água potável através de autotanques.

“Primeiro deparámo-nos com o problema das rupturas na rede, que só por si representavam um desperdício de água incomportável. Depois, os furos começaram a baixar e o débito que se obtinha não assegurava o abastecimento público, sobretudo em S. Miguel e S. Pedro”, resume o autarca.

Ao fim de três anos seguidos de seca, e dada a baixa pluviosidade ocorrido no Outono/Inverno, os aquíferos subterrâneos não recarregaram o suficiente para assegurar o volume de água necessário para abastecer a população das três freguesias que, no seu conjunto, somam 946 pessoas, dispersas por um território com 275 quilómetros quadrados.

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Os autotanques fazem a transferência da água para o depósito que serve as povoações e entra na rede assegurando, assim, o abastecimento, explica António Peleja, que descreve a dimensão da tarefa: “Temos cerca de 40 povoações com um número de habitantes que varia entre as duas pessoas e a centena”, sublinha. Esta realidade obriga a que tenha de ser implementado um sistema de distribuição de água em tempo de escassez muito complexo e exigente em custos, meios humanos e equipamento de transporte de água.

As consequências da escassez de água não se observam apenas no abastecimento público e no abeberamento do gado. Manuela Marques Bonito tem uma panificadora em S. Miguel do Pinheiro, onde fabrica pão alentejano. “Se não temos água, não temos pão”, sintetiza. Tornou-se frequente ir às 4h da madrugada buscar água ao furo que existe próximo da sua empresa, aproveitando o recarregamento nocturno do aquífero, para amassar entre 400 a 500 pães.

A ajuda de Alqueva

Jorge Rosa, presidente da Câmara de Mértola, diz que os problemas de falta de água já persistem “há cerca de um mês”. Neste tempo, os serviços municipais foram confrontados com a possibilidade de terem de ser desactivados “entre dez a 12 furos” que abastecem diversos aglomerados populacionais sobretudo no sul do concelho. A alternativa passa por mitigar a escassez de água através do recurso a autotanques e abrindo novos furos, explica o autarca, destacando ainda um pormenor: as altas temperaturas levam a uma maior procura do já escasso líquido, sobretudo por parte de residentes temporários que surgem nesta altura, quer sejam turistas ou emigrantes que vêm de férias, que “têm hábitos de consumo que acabam por ter impacto no aumento dos gastos de água”.

Mas a solução que vai garantir o abastecimento sem sobressaltos “reside em Alqueva”, refere Jorge Rosa, que fica a aguardar pelo cumprimento da decisão já anunciada pelo Governo de reforçar os caudais na barragem do Monte da Rocha, localizada no concelho de Ourique, e a partir daqui consolidar o abastecimento a parte do concelho de Mértola. É o que está a ser feito noutro ponto da bacia do Sado, na barragem do Roxo, onde a situação já não é, neste momento, tão dramática por estar a receber água da grande albufeira alentejana.   

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Mas enquanto essa ajuda de Alqueva não chega, o panorama nesta barragem é desolador. A capacidade de armazenamento máximo da sua albufeira é de 103 milhões de metros cúbicos. Neste momento está nos 13 milhões, que asseguram, com água de muito má qualidade, o abastecimento público dos concelhos de Castro Verde, Ourique e Almodôvar.

Na agricultura, o problema complica-se à medida que as charcas e os pegos das ribeiras secam. Alqueva, a mãe de água que prometeu matar a sede aos alentejanos, é ainda madrasta para um extenso território, ao qual ainda não chega. Mas este é um problema que está a começar a ser debelado, uma vez que anos seguidos de seca e fraca pluviosidade fizeram aumentar as solicitações de água à grande albufeira, obrigando a levar o precioso líquido cada vez mais longe e a mais gente.

Situação-limite

Com as temperaturas acima de 40 graus, o consumo de água nos animais duplica, explica José da Luz, presidente da Associação de Agricultores do Campo Branco (AACB), que abrange os concelhos de Castro Verde, Mértola, Ourique, Almodôvar e Aljustrel. Uma vaca consome a temperaturas normais (20 a 25 graus Celsius) cerca de 50 litros de água por dia, mas quando os termómetros tocam ou superam os 40 graus “consome cerca de 100 litros”. Na área do Campo Branco apascentam 145 mil ruminantes, entre ovinos e caprinos, e 25 mil vacas reprodutoras, efectivo que “duplica com as crias”. Fornecer água a um tão elevado número de animais obrigou os agricultores a “instalar, ao longo das duas últimas décadas, charcas e a abrir furos”, salienta o dirigente associativo. Mesmo assim, quando chegam períodos de seca severa ou extrema, o recurso aos autotanques dos bombeiros voluntários revela que se chegou a uma situação-limite, como está a acontecer.

José da Luz admitiu ao PÚBLICO que a “tendência” de agravamento que se observa neste momento pode conduzir a uma situação crítica em meados de Agosto se as temperaturas permanecerem altas. Apesar de algumas charcas ainda apresentarem alguma reserva de água, o presidente da AACB adverte para as consequências que podem resultar “para a saúde e até a vida dos animais” se consumirem uma água altamente poluída. Por isso, quando as reservas de água descem até um certo nível, “não são utilizadas”, realça José da Luz. E os criadores deixam de poder contar com estas soluções que implementaram nos últimos tempos.

Mais a sul, em S. Miguel do Pinheiro, António Jerónimo Almeida, 70 anos, é um dos poucos produtores pecuários que ainda se mantém em actividade. Preocupado, assegura que a falta de água para os animais “é, neste momento, um grande problema”. Tem os seus animais, 180 bovinos e 400 ovelhas, a consumir de pontos de água que estão “praticamente secos” e “ainda faltam dois meses até ao Outono” lembra.

Recolhe água de furos e de pegos que ainda apresentam algum caudal nas ribeiras que atravessam a freguesia, “mas dentro de dias está tudo seco”, antecipa. Acresce ainda um outro problema: a água que é descarregada a partir da mina de Neves Corvo para uma das ribeiras que deveria suportar o consumo do gado “cheira mal e até deixa as pedras negras”. A sorte é que os animais “nem as patas molham naquela água”, refere o agricultor.

As dificuldades impostas pelo tempo quente e a escassez de água recorrente reduziram substancialmente a actividade pecuária nas freguesias mais a sul do concelho de Mértola. “Na minha freguesia [S. Miguel do Pinheiro] já tivemos oito mil animais. Agora não haverá dois mil.” Só três agricultores é que ainda se mantêm. “Dá muito trabalho”, argumenta Jerónimo Almeida, acrescentando que “a rapaziada nova vai toda para o Algarve trabalhar” e “os mais velhos é que ficam”.

O receio por dias piores para o sector pecuário também está no centro das preocupações de Jorge Rosa, presidente da Câmara de Mértola. E dá conta dos constrangimentos que estão a afectar os criadores de gado do seu concelho, que já estão a recorrer aos autotanques para ir buscar água onde esta ainda existe, seja “nos pegos, nas ribeiras, nas pequenas barragens e até no rio Guadiana”. Contudo, esta está longe de ser a solução adequada para os problemas que a situação de seca impõe.

Os agricultores são forçados a percorrer dezenas de quilómetros até encontrar água para os seus animais, o que é “insustentável”, refere o autarca, frisando que ainda existem algumas reservas que entretanto irão desaparecer. Mas, à medida que crescem as dificuldades, aumenta também a solidariedade entre agricultores, com aqueles que ainda têm algumas reservas a permitirem aos que nada têm que levem água. 

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