Saul Williams, declamador do fim dos tempos em Sines

Ao poeta e cantor norte-americano coube a mais incendiária actuação dos primeiros dias do FMM em Sines. Houve também espaço para a promoção dos JAE Sessions: da rua para o palco.

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Saul Williams Mário Pires/FMM
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Saul Williams Mário Pires/FMM
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Os Coladera Mário Pires/FMM
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O duo JAE Sessions Mário Pires/FMM

Faltam dez minutos para arrancar a sessão da noite (terça-feira) no auditório do Centro de Artes de Sines. É uma sessão dupla, apontada para o jazz, com as presenças de Boi Akih e Sumrrá, num espaço dedicado a concertos mais intimistas por onde têm passado algumas das mais transformadoras experiências musicais do Festival Músicas do Mundo nos últimos anos – foi ali que vimos Colin Stetson construir belíssimas miragens sonoras com o saxofone baixo, ou que descobrimos Sílvia Pérez Cruz num arrepiante concerto partilhado com Raül Fernandez Miró. Mas quando faltam dez minutos para o início do concerto de Boi Akih e a fila para o auditório se forma, cá em baixo, junto ao adro da igreja, um trio espontâneo vai desfiando canções de country agitada segundo os mandamentos de Johnny Cash e de swing com selo de New Orleans, munido de guitarra, banjo e harmónica.

O nome desta gente é uma incógnita, mas há uma articulação mínima para se perceber que não resulta de um encontro espontâneo (como muitas vezes acontece ali mesmo, à medida que a noite avança), ao mesmo tempo que a voz bem temperada do vocalista/banjoísta vai juntando algum público à sua volta. São um bom exemplo daquilo que vem acontecendo há vários anos nas ruas de Sines durante o FMM – músicos que criam uma espécie de festival off, tocando para quem passa, num evento paralelo que, como é o caso, dá algumas mostras de consistência. A prova de que a organização não ignora o facto foi o convite lançado este ano para que o duo JAE Sessions – que tínhamos encontrado em anos anteriores nas esquinas próximas do Castelo –, vindo dos arrabaldes de Coimbra, surgisse na programação oficial. Em boa hora o fez. A miríade de soluções rock/reggae/ska/psicadélicas que saem de uma guitarra sempre a escalar nas camadas da loop station, acompanhada de uma bateria segura, lembra uns Memória de Peixe com uma personalidade menos marcada, mas foi uma aposta ganha e deixou o público num êxtase que, mais uma vez, prova que em Sines não importa se onde se vem, conta o que se faz em palco.

Esse mesmo palco, colocado no Largo Poeta Bocage, de frente para a entrada no Castelo de Sines, onde na noite de segunda-feira o poeta e cantor nova-iorquino Saul Williams derramou uma contínua verve política por cima de uma instrumentação electrónica densa e pesada, reminiscente do trip-hop narcótico de Tricky, microcosmos ficcional para as histórias de um MartyrLoserKing que só enquanto personagem se descola da realidade. Atrás de Saul Williams, o tempo todo, um ecrã com montagens visuais em que correr uma sequência de palavras de ordem – “os pastores errados conduzem-nos”. Com um fio de melodia na sua voz metálica a lembrar Chuck Mosley (primeiro vocalista dos Faith No More), Saul monta um portentoso espectáculo cuja música parece um prenúncio do fim dos tempos e em que debita acusações, identifica alvos – “É tempo de atacarmos o 1%” – e se recusa a ser decifrado por um algoritmo.

Horas antes, no mesmo lugar, o havaiano Mike Love havia de culpar smartphones, fast food e outros que tais pelo estado enfermo do mundo, apontar o dedo aos media que instigam o medo e professar a sua mensagem de que as divisões dos países pouco interessam quando os espíritos se tocam. Love sabe o que fazer com as melodias plasmadas sobre fundos reggae e canta para um público que está totalmente sintonizado com ele. Mesmo que, aqui e ali, desembolse o smartphone para registar o momento.

Portugal-Brasil-Cabo Verde

Está na hora do concerto de Boi Akih no Centro de Artes. Trata-se do projecto que a cantora Monica Akihary montou na Holanda para visitar as suas origens nas Ilhas Molucas (um pequeno arquipélago na Indonésia). As Liquid Songs do grupo servem-se de um exotismo pedido de empréstimo a essas paragens longínquas, enquanto a voz de Akihary vai trilhando caminhos nada desconhecidos àqueles que conhecemos de Maria João. Uma dose de inventividade apreciável a que falta algum rasgo, ainda assim. Logo depois chega o trio galego Sumrrá, em apresentação de um disco com composições inspiradas por cidades tão diferentes como Joanesburgo, Santa Cruz, Sófia, Pretória ou Braga. Não custa a perceber que a matriz dos espanhóis está no equilíbrio entre atracção melódica no piano e secção rítmica com uma solidez quase rockeira que foi sempre a imagem de marca do Esbjörn Svensson Trio. Jazz com bons acabamentos (apesar de um par de solos sofríveis), que perde por o desarranjo do baterista não alastrar aos outros dois.

Mais entusiasmante foi, na véspera, a passagem dos Coladera pelo Centro de Artes. É música feita do triângulo Portugal-Brasil-Cabo Verde, tão mais feliz quanto mais se afasta do exercício de querer soar a qualquer uma destas coordenadas. Quando tentam colar-se a uma tradição (morna, funaná, samba), parecem apenas alunos competentes; mas sempre que deixam o espaço comum aos três contaminar a música, a impureza dá-lhes uma graça suplementar e engendram qualquer coisa de muito particular.

Às vezes, o melhor é mesmo não inventar muito, como provou o projecto Cantos de Cego da Galiza e de Portugal nos fins de tarde. Canções de crimes e traições que espremidas jorram sangue por todo o lado, pequenas delícias recolhidas dos reportórios cantados nas feiras dos anos 60 e 70 e disseminadoras de grandes lições de vida: por exemplo, um velho que persegue a mocidade, pode muito bem acordar sem nariz, arrancado pela mulher.

 

O PÚBLICO esteve no Festival Músicas do Mundo a convite da organização

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