De conservadorismos não se fará a memória do Milhões

Os Graveyard eram a banda mais esperada e foram os responsáveis pela enchente na noite de sábado, a penúltima do festival barcelense. Assinaram um concerto atípico, uma bolsa conservadora entre o arrojo e partilha de Yussef Dayes, Sly & The Family Drone ou Moor Mother.

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Disseram-nos que testemunharíamos algo nunca visto. Que nos preparássemos para aquilo a que iríamos assistir. Estávamos preparados, ansiosos, até, pela chegada desses tão badalados FF. Quem são? Pois bem, foram os vencedores da meia-final do Milhões de Matrecos disputada em Barcelos, há uma semana, deixando, pelas descrições, um perfume de matraquilho espectáculo com afinidades com o Brasil de 82, o de Sócrates, e eram os grandes favoritos nas finais, disputadas este sábado no mini-estádio instalado no recinto do festival. Aconteceu no dia em que o Milhões de Festa esteve próximo da lotação esgotada – os grandes responsáveis não foram os matrecos, foram os suecos Graveyard, mas deles não rezará a história da décima edição do festival minhoto.

Faltou à banda principal em cartaz a capacidade de improviso e o arrojo que, imaginamos, os tais FF espalharam na mesa de matraquilhos. Imaginamos porque, na verdade, não chegámos a vê-los em acção. Longa vida aos matrecos, mas, à mesma hora, algo acontecia no palco principal do festival. Algo irrecusável: o trio de Yussef Dayes, ao início da noite, a presentear o público com jazz nas margens do funk, com breakbeat em tangente com rock, com dança nocturna e um virtuosismo feliz exercitado com prazer – deles e nosso. Baterista em destaque numa cena jazz londrina de horizontes muito vastos, Yussef editou no ano passado Black Focus, assinado Yussef Kamaal (foi gravado com Kamaal Williams). Surgiu agora em trio, acompanhado de um baixista e guitarrista, Mansur Brown, e de um teclista, Charlie Stacey. Máquina rítmica de precisão, Yussef foi o líder generoso que conduziu a banda por uma sessão de música extraordinariamente física – tudo ritmo – e divagante – viajemos, pareciam dizer, e viajámos.

Foram actualização moderna do Headhunters, de Herbie Hancock, consciente do hip hop e das arritmias electrónicas do século XXI. Guiou-os o improviso ao sabor do momento, com os músicos alternando entre si a liderança dos temas. Quando começaram, muitos sentaram-se na relva a absorver o som do órgão Rhodes. Quando terminaram, ninguém parava sentado.

Ora, é precisamente essa capacidade de surpreender, de mostrar música viva e activa deste e neste tempo, que, ano após ano, nos atrai na programação do Milhões de Festa. Sábado, penúltimo dia de festival, não faltou música assim. A excepção, curiosamente, chegou através dos responsáveis pela enchente, os suecos Graveyard. Anunciaram o fim da banda em Setembro de 2016, e a reunião em Janeiro de 2017 (acontece tudo tão rápido, hoje em dia), mesmo a tempo de serem chamados a regressar ao festival em que tinham actuado há seis anos. Eram muito aguardados, mas mostraram um frustrante conservadorismo. Quando anunciaram uma viagem até aos “oldies”, a música agitou-se, seguindo a vertigem eléctrica de uns Blue Cheer, mas foi agitação breve. Na maior parte do tempo, foram como que banda imaginária incluída em Almost Famous, o filme crónica do rock e deboche dos anos 1970, quais Allman Brothers Band ou Lynyrd Skynyrd a fazer tudo como manda o guião. Vimo-los e seguimos em frente. O que levámos do Milhões, este sábado, foram outras coisas.

Foi o ataque brutal dos noruegueses Brutal Blues, passe a redundância, e o seu grind-core em ritmo impossível coberto de gritos e guinchos demoníacos que vimos à tarde no Palco Taina. Foi o encontro entre os Cave Story, Duquesa e Ra-Fa-El (dois Glockenwise, portanto), com três guitarras em diálogo sónico feliz e as óptimas canções dos protagonistas mostrando novas roupagens no Palco Lovers ao início da noite. Foi a dança de Janka Nabay no Palco Milhões, músico da Serra Leoa hoje habitante de Nova Iorque, um momento de descontracção lúdica quando a madrugada já avançava. Foi aquele saxofone incendiário a fazer caminho entre a nebulosa kraut e shoegaze dos óptimos Sex Swing, era 1h00 no Palco Lovers, e foi Moor Mother, ou seja, a americana Camae Ayewa, nada mais que ela e um laptop no palco, a rappar a sua poesia de intervenção, a expor os seus e os nossos demónios com fúria, a pedir revolução em todo o lado num mundo sem amor – “You fucking hate us”, diz ela, enquanto o som saturado, hip hop feito gravilha arrastada no chão, nos envolve e nos suga para o mundo conturbado, violento, racista, que ela canta e denuncia.  

Foi, por fim, a frustração de ver Yves Tumor esconder-se na escuridão – pediu para desligar as luzes de palco durante o concerto – e preferir a insularidade à partilha, e, no extremo oposto, a forma como os Sly & The Family Drone fizeram do fim de tarde no Palco Piscina uma experiência delirante que nos envolveu a todos. O combo britânico é um portento noise deliciosamente descontrolado, familiar de uns Wolf Eyes.

Desceram do palco para se misturarem com a multidão, tocaram em volume altíssimo os bordões distorcidos em que baseiam a sua música, distribuíram timbalões, baquetas e os bidões usados por faUSt e GNOD no concerto do dia anterior, ergueram-se sobre o público em crowd-surf feito em insuflável e acabaram mergulhados na piscina enquanto o som não deixava de nos entontecer. Foram intensos e generosos. Levamo-los connosco nas memórias do festival que termina, domingo, com concertos de Meatbodies, Pop Dell’Arte ou Chúpame El Dedo.

Mas e os FF, a equipa de matrecos equiparável ao Brasil de 82, pergunta o caro leitor? Ao contrário da "canarinha" de Sócrates, ganhou mesmo o torneio. O Milhões a fazer campeões.

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