Inspectora da IGF descoberta nas listas do Swissleaks audita as PPP

Entidade que auditou “apagão” dos offshores no fisco reconduziu inspectora apanhada no Swissleaks, com funções de topo no controlo financeiro de contratos de concessão. IGF invoca parecer da PGR.

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O caso Swissleaks revelou documentos confidenciais do HSBC, também conhecidos como “Lista Lagarde” Reuters/LUKE MACGREGOR

A inspectora da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) Filomena Martinho Bacelar, descoberta em 2015 nas listas do Swissleaks como alegada cliente da filial do HSBC Private Bank em Genebra, foi reconduzida internamente ao longo dos últimos dois anos como chefe de equipa da IGF, com responsabilidades no controlo do sector empresarial do Estado e das Parcerias Público Privadas (PPP).

O PÚBLICO sabe que as duas últimas decisões de manter Filomena Bacelar com estas responsabilidades, já em 2016 e 2017 depois de o caso estalar na praça pública, têm gerado interrogações em surdina na IGF, pelo receio de ver comprometida a imagem da própria instituição. Isto porque os portugueses que têm ou tiveram contas bancárias na filial suíça do HSBC (611 contas relacionadas com Portugal em 2006/2007) ficaram no radar do fisco desde 2015 e as investigações continuam no terreno, para averiguar os contornos de eventuais práticas de planeamento fiscal e de eventuais infracções tributárias.

Ainda há poucas semanas, o Parlamento ficou a saber que o fisco português recebeu resposta da Suíça em 2016 aos pedidos de informação relativamente a 33 sujeitos passivos residentes em Portugal, estando em marcha acções relativamente a outras 69 situações. Não se sabe, no entanto, se a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) já abordou Filomena Martinho Bacelar, que não respondeu às perguntas enviadas pelo PÚBLICO, através do Ministério das Finanças, sobre o seu caso e sobre a avaliação dos deveres previstos no código de ética da instituição.

A Inspecção-Geral de Finanças é a entidade de auditoria incumbida de garantir o controlo externo da administração tributária, de empresas públicas, de organismos e da administração local, por exemplo. É o mesmo serviço a quem coube realizar recentemente a auditoria ao “apagão” no fisco de 10.000 milhões de euros de transferências para offshores, cuja conclusão foi a de que a “insuficiência informática” não terá sido provocada por uma “intervenção humana deliberada”.

Filomena Martinho Bacelar é uma entre seis chefes de equipa a quem têm sido atribuídas as funções de direcção operacional com as competências equiparadas às dos inspectores de finanças directores, os cargos dirigentes que, na hierarquia da IGF, estão imediatamente abaixo da direcção máxima (o inspector-geral e a sua equipa de quatro subinspectores-gerais).

Segundo a IGF, a inspectora chefe não exerce funções no domínio do controlo tributário. Mas tem entre as suas tarefas, de forma partilhada com outros dirigentes e sob a supervisão hierárquica, o planeamento e a avaliação de desempenho da própria IGF e o apoio técnico ao gabinete do inspector-geral, Vítor Braz.

Execução de contratos

De acordo com a documentação a que o PÚBLICO teve acesso, entre as várias áreas funcionais que a inspectora tem a seu cargo — com outros directores ou chefes de equipa — estão projectos que visam “promover a transparência na gestão das empresas públicas”, “contribuir para a boa execução financeira dos contratos de PPP e de outros contratos de concessão” e acompanhar a “regularidade na atribuição de compensações financeiras a empresas prestadoras de serviço público”.

O plano de actividades da IGF para a área das PPP e contratos de concessão prevê “acções de controlo com o objectivo de aferir da sustentabilidade das contas públicas a médio e longo prazo e da eficiente gestão dos recursos”. Cabe à inspecção controlar a “boa execução financeira dos contratos, o cumprimento da legalidade e a identificação dos impactos financeiros”.

Assim que o nome da inspectora apareceu associado às listas do Swissleaks, revelado pela TVI no dia 12 de Março de 2015 através do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (CIJI), a IGF considerou que o assunto era “do foro familiar sem relação com a sua actividade profissional”. Logo aí pediu um inquérito externo a que a então ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, deu seguimento. Essa tarefa, como o PÚBLICO já noticiou em Julho de 2016, coube à Procuradoria-Geral da República (PGR), que entendeu não haver razões para afastar a inspectora, algo que a IGF agora reafirma.

Bordel Investments

Segundo a investigação da TVI de Março de 2015, a alegada ficha de Filomena Martinho Bacelar na filial do HSBC na Suíça surgia ligada a um offshore chamado Bordel Investment Holdings Limited. Estava sediado em 2006/2007 nas Ilhas Virgens Britânicas e tinha associados 428 mil dólares (cerca de 370 mil euros ao câmbio actual). Dois familiares, avançou a estação televisiva, também teriam ficha no banco — um com 1,6 milhões de dólares (cerca de 1,4 milhões de euros) e outro com 374 mil dólares (324 mil euros).

Nestes documentos aparece associado um outro offshore — Pernell Enterprises Limited. E o Bordel Investments Holdings Limited surgia como proprietário da empresa Searchouse Imobiliária, Unipessoal, Lda., então sediada na Torre das Amoreiras, em Lisboa.

O PÚBLICO questionou na última semana o inspector-geral da IGF sobre a recondução de Filomena Martinho Bacelar e as respostas chegaram em nome do Conselho de Inspecção, órgão a que Vítor Braz preside. A decisão é justificada com o parecer da PGR, para quem “nada existe do ponto de vista legal que obste ao pleno exercício” das atribuições inscritas no estatuto profissional de Filomena Martinho Bacelar. Foi perante esta conclusão que a direcção da IGF decidiu renovar as funções de Bacelar “tal como vinha sucedendo, de forma ininterrupta, desde 2007, observando-se que a inspectora exerceu o cargo de inspectora de finanças chefe desde 1996 até 2007”.

A IGF valorizou o facto de a mesma responsável já ter assumido a direcção de vários projectos desde 2009, o que, para este órgão consultivo dirigido por Vítor Braz, “atesta o reconhecimento da sua competência profissional por parte de sucessivas direcções da IGF, face à constância dos bons resultados em sede de avaliação do respectivo desempenho”. A decisão de não afastar Filomena Bacelar teve ainda em conta “o princípio constitucional da presunção de inocência, bem como os princípios éticos de independência, objectividade e transparência”.

O código de ética

As explicações do Conselho de Inspecção foram enviados ao PÚBLICO depois de o inspector-geral ser confrontado com o código de ética da IGF, que a todos os funcionários impõe “que, no exercício da sua actividade, ou fora dela, assumam e difundam uma cultura ética e um sentido de serviço público, com vista a assegurar e fomentar uma imagem de responsabilidade, independência e integridade, valorizando, deste modo, quer a qualidade, rigor e credibilidade do serviço público prestado, quer o perfil dos trabalhadores enquanto activo mais valioso da IGF”.

Quando questionado se, internamente, foi pedida a intervenção do consultor de ética da IGF, uma figura prevista no código, o Conselho de Inspecção não precisou este ponto. Na resposta, referiu antes que a actual direcção está a reforçar “o enquadramento ético aplicável aos seus trabalhadores” e a rever as normas éticas, “designadamente no sentido da constituição de um Conselho de Ética, órgão colegial, maioritariamente constituído por personalidades externas à IGF e para cuja presidência foi já convidado um magistrado de reconhecido mérito e prestígio”.

Os nomes do Swissleaks que há dois anos vieram para a praça pública, como o de Filomena Bacelar, fazem parte dos ficheiros confidenciais do HSBC de Genebra, roubados alguns anos antes por um ex-funcionário do banco, o informático franco-italiano Hervé Falciani. O caso remonta a 2008/2009 quando estes documentos chegam às mãos das autoridades francesas, acabando por ficar conhecidos como “Lista Lagarde”. A actual directora-geral do FMI era ministra das Finanças francesa e partilhou a documentação com outros países. O Swissleaks foi apenas um dos episódios de um fio de revelações que tiveram eco noutros escândalos mais recentes associados a práticas de planeamento fiscal agressivo, do Luxleaks aos Panama Papers.

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