Alemanha endurece discurso e anuncia reorientação da política para a Turquia

Ministro dos Negócios Estrangeiros reage à detenção de mais um alemão avisando que o mesmo pode acontecer a outros cidadãos que visitem o país.

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Sigmar Gabriel Reuters

A Alemanha subiu o tom da linguagem diplomática em relação à Turquia e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sigmar Gabriel, anunciou uma “reorientação da política externa" alemã — uma das mais duras declarações diplomáticas recentes de Berlim. É mais um episódio num crescente rol de problemas entre os dois aliados, ou um ponto de viragem?

O analista do centro de estudos internacionais German Council on Foreign Relations (DGAP, na sigla em alemão), Kristian Brakel, disse ao PÚBLICO por telefone que vê aqui mais uma escalada diplomática — mas o que vai acontecer agora, defende, depende sobretudo da reacção da Turquia.

As declarações do ministro, que reagia à detenção de mais um alemão pela Turquia, o activista de direitos humanos Peter Steudtner, incidiram sobre três pontos principais. Sigmar Gabriel aconselhou cautela aos alemães que visitem o país e, mencionando a prisão de Steudtner e a condenação e prisão do jornalista Deniz Yücel, disse que o que lhes aconteceu “pode acontecer a qualquer cidadão alemão”.

O MNE alemão não chegou a fazer um anúncio formal para que os seus cidadãos evitem viagens à Turquia, mas pediu cuidado especial e aconselhou o registo nos consulados e embaixadas alemãs a quem viajar. “São possíveis as coisas mais absurdas”, alertou Gabriel.

Segundo as autoridades alemãs, desde a tentativa de golpe falhada de há um ano na Turquia foram detidos 22 cidadãos alemães na Turquia, dos quais nove estão actualmente presos.

Na sua declaração, Gabriel também disse que não via a possibilidade de alargar a união aduaneira europeia à Turquia e que iria discutir com outros líderes europeus a revisão de fundos à Turquia de pré-adesão à União Europeia. Como explicou ao PÚBLICO Kristian Brakel, estes fundos estão já a ser divididos entre o Governo e ONG no país, e é possível que sejam cada vez mais canalizados para as organizações.

Gabriel anunciou ainda que o Governo alemão poderá deixar de dar uma linha de crédito para as empresas alemãs que exportem para a Turquia dado o perigo de “expropriações arbitrárias por motivos políticos”. “Isto dá um sinal de que o Governo alemão já não considera a situação segura”, comenta Brakel, classificando este como o anúncio mais relevante de todos.

O porta-voz de Recep Tayyip Erdogan, Ibrahim Kalin, referiu-se especialmente ao ponto da segurança dos alemães na Turquia e da segurança para os investimentos, negando que houvesse algum problema. Acusou a Alemanha de não respeitar a justiça turca, e de uma certa “mania da perseguição”, sugerindo ainda que a proximidade das eleições alemãs provocou estas declarações. Na votação de 24 de Setembro, o SPD de Gabriel enfrenta uma tarefa impossível de chegar perto da CDU de Angela Merkel, ainda que ambos estejam juntos actualmente numa “grande coligação”.

Mas em relação à Turquia “há uma enorme unanimidade nos partidos alemães”, sublinha Brakel. “A declaração do MNE tem a ver com a acção da Turquia e não com o calendário eleitoral alemão.”

Reféns?

Juntando-se à indignação causada pelas detenções dos activistas de direitos humanos, alemães e de outras nacionalidades, o diário de grande circulação Bild noticiava esta quinta-feira que Ancara tinha proposto recentemente a Berlim libertar o jornalista Deniz Yücel se a Alemanha extraditasse dois antigos generais do exército turco acusados de envolvimento na tentativa de golpe. É algo que apoia a descrição que alguns políticos alemães têm feito da detenção do jornalista, que será de “refém” (Yücel foi condenado por apoiar um grupo terrorista, depois de ter publicado no diário Welt, de que é correspondente, um artigo sobre o ministro da Energia e genro de Erdogan).

A relação entre a Alemanha e a Turquia tem tido recorrentes problemas, tantos que é difícil uma lista exaustiva: do comediante alemão que foi a tribunal por insulto a Erdogan, à aprovação pelo Parlamento alemão do reconhecimento do massacre de arménios pelos otomanos como um genocídio, aos ministros turcos impedidos de fazer campanha em várias cidades alemãs na altura do referendo na Turquia, às notícias de que os serviços secretos turcos espiaram cidadãos alemães, incluindo deputados, à proibição de Ancara que políticos alemães visitassem a base de Incirlik em que estavam tropas alemãs, e que levou à decisão da Alemanha de retirar os seus 200 soldados do local.

A Turquia tem ainda ameaçado ciclicamente romper o acordo sobre os refugiados que tem com a União Europeia, algo pouco provável dado o montante em ajuda que recebe da União Europeia e que perderia caso terminasse o acordo.

Kristian Brakel sublinha um ponto: “A Alemanha não está apta a lidar com isto — a sua diplomacia tem sido completamente orientada para consensos.” E a União Europeia está perante um dilema: “Por um lado quer enviar um sinal forte de que as coisas não podem continuar assim, por outro quer manter a relação”, diz. “A Turquia é um parceiro importante em termos de comércio e de segurança. A alternativa é deixá-la ir, em direcção à Rússia ou como um ‘agente livre’. Não será uma opção melhor.”

Esta quinta-feira, Gabriel acabou a sua declaração dizendo que a Alemanha “ainda está interessada numa boa relação com a Turquia”; e o porta-voz de Erdogan sublinhou que a Alemanha é para a Turquia um importante parceiro comercial.

A ligação entre a Turquia e Alemanha tem sobrevivido a quase tudo, porque tem uma base forte: a Alemanha é o principal destino da imigração turca e os turcos são a principal minoria no país; apesar da quebra do turismo na Turquia desde os atentados terroristas de 2015 e do golpe falhado, os alemães são o maior grupo entre os turistas estrangeiros, e os dois partilham importantes laços comerciais (a Alemanha é o principal destino das exportações turcas, com cerca de 15 mil milhões de dólares de bens exportados por ano, e a Turquia importa mais de 21 mil milhões da Alemanha).

Para Brakel, há agora dois cenários: “A Turquia decide escalar e atacar instituições alemãs no país, e aí o Governo alemão teria mesmo de pensar em ter outro tipo de acção mais assertiva, ou não, e continua este tipo de acções de retaliação dos últimos meses, melhor ou pior. Mas nunca irá recuperar para o nível anterior enquanto tiver presos estes jornalistas e activistas de direitos humanos.”

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