Fogos invisíveis II

1.Os incêndios florestais, muito mais do que um problema militar, policial ou administrativo, são um problema eminentemente social.

 

Volto a recorrer ao título de um artigo que escrevi há quase dois anos neste jornal (Fogos invisíveis – PÚBLICO de 25/8/2015).

O ano passado, num outro artigo também publicado neste jornal (Fogos visíveis – PÚBLICO de 10/8/2016), concluindo, confessava que temia que esse artigo de 25/8/2015 se “mantivesse actual por muito anos”.

As circunstâncias, infelizmente, levam-me à confirmação dessa “profecia”.

Não propriamente as circunstâncias da catástrofe de Pedrógão Grande que, essas, pela dimensão avassaladora, chocante, das suas consequências humanas e sociais, me impõem respeito e silêncio, quer pelo luto das famílias das vítimas, quer por dever (ainda) de espera do resultado da reflexão serena, sustentada e consequente de quem de direito. Mas as dos fogos florestais em geral.

É certo que estes continuam a ser assustadoramente visíveis. Mas encerram também neles, naquilo que com eles se relaciona, muita coisa “invisível” em que, porque essencial, é necessário reparar (não basta olhar ou mesmo ver; como há quase 600 anos aconselhou el-rei D. Duarte, no Livro dos Conselhos).

Alguns exemplos (não exaustivos) daquilo em que, porque mais ou menos “invisível”, é premente (ou, pelo menos, conveniente) que se repare:

  1. Os incêndios florestais, muito mais do que um problema militar, policial ou administrativo, são um problema eminentemente social. Nas suas consequências, claro, tragicamente evidentes; mas também, ainda que mais invisivelmente, nas suas causas (abandono, por depauperamento económico e social, da agricultura e da floresta; falta de ordenamento e de acompanhamento desta, envelhecimento; desaparecimento ou perda de qualidade dos Serviços Públicos descentralizados; enfim, desertificação e desumanização do interior);

  2. Os incêndios florestais não são (só) um problema micro, do foro individual dos (pequenos) proprietários da floresta (que, eventualmente, não a emparcelam, limpam e ordenam muito por incapacidade física ou económica) mas, essencialmente, um problema macro, do foro do Estado, porque de inexistência, insuficiência ou inadequabilidade de políticas e práticas de organização, ordenamento (no seu sentido abrangente) e acompanhamento próximo e permanente da floresta, bem como de envolvimento social por via de sensibilização e estímulos e apoios técnicos (por exemplo, ao emparcelamento e à limpeza comunitária, ao aproveitamento da biomassa, etc.), sociais, fiscais e económicos à sua aceitação, manutenção e desenvolvimento;

  3. Os incêndios florestais são, nas suas consequências, nas suas causas, na sua prevenção e, mesmo, no seu “combate", um problema essencialmente local e não nacional;

  4. Os incêndios florestais são, nas suas consequências, nas suas causas e, sobretudo, na sua prevenção, um problema essencialmente estrutural, permanente. E não um problema “apenas” conjuntural, episódico.

    Apesar da sua ofuscante visibilidade no Verão, estão a “arder sem se ver” muito antes (e depois) do Verão. Pelo que, então, não prevenindo (ou até agravando) deles o risco, se faz, se desfaz ou se deixa de fazer;

  5. Os incêndios florestais não são “apenas” um risco objectivo, pelo que deles, visível, pode decorrer de risco para as pessoas (e, concretamente, para a sua saúde, integridade física ou, mesmo, vida) e bens mas, também, mesmo (ainda) não ardendo, um risco subjectivo, invisível, pelo que a probabilidade deles se desencadearem, alastrarem e desenvolverem pode projectar (como, de facto, projecta) de ansiedade e medo nas pessoas, sobretudo se sem sustentada e evidente garantia da sua prevenção e da eficácia protectora do seu “combate”;

  6. Os incêndios florestais têm sido reflectidos essencialmente (se não exclusivamente) pelo paradigma do seu “combate”, sempre muito dispendioso, humana e socialmente desgastante e, sobretudo, perigoso. Havendo que destacar nisso o (sobre)esforço, e mesmo o (sobre)sacrifício dos bombeiros, sendo já muitos os que, frequentemente, pagaram com a própria vida o enfrentamento desse(s) perigos(s).

    Objectivamente, tem sido desprezado o paradigma da sua prevenção sustentada e sustentável, de forma a que fosse este paradigma a condicionar o do seu “combate”. E não, como tem sido visível, de que seja, continue a ser (tenha que ser), o seu “combate” a determinar (e mesmo a substituir) a sua (não) prevenção;

  7. O fogo não é um (o) “inimigo” mas um ancestral amigo da Natureza (de que o homem faz parte), cuja amizade pode degenerar em ódio destruidor quando desprezado, ostracizado, abandonado ao risco dos seus “comportamentos desviantes”. Os quais, verdadeiramente – também os fogos “são eles e as suas circunstâncias” -, lhe foram induzidos e mesmo despoletados pela acção (ou omissão) do homem;

  8. Os incêndios florestais só se desencadeiam, desenvolvem e “combatem” num “teatro de operações” (“TO”) nas comunicações via rádio. Realmente, ontologicamente, desencadeiam-se, desenvolvem-se e “combatem-se” na floresta, com tudo o que esta tem (e deve ser considerado) de essencial e naturalmente florestal (e, necessariamente, também biológico, ambiental, geográfico, orográfico, económico, humano, social, etc.);

  9. O “combate” aos incêndios florestais, se necessário, muito mais do que um problema de quantidade, “peso” e permanência dos meios, é, essencialmente, um problema de qualidade e (mormente) rapidez da resposta inicial. E, daí, de planeamento, organização, vigilância, qualificação e permanente disponibilidade de pessoas e de adequabilidade e ligeireza (no duplo sentido da sua estrutura e da sua rapidez de intervenção) dos meios nele envolvidos;

  10. Assim, do que, “invisível”, precede, talvez que, ainda que também “invisível”, haja um equívoco quanto a incêndios florestais (ainda que só quanto a estes) nos conceitos que definem a sigla do respectivo enquadramento departamental do Estado que prepondera neste domínio, ou seja, na sigla ANPC – Autoridade Nacional de Protecção Civil.

    Isto na medida em que o A deva ser entendido muito mais como serviço (serviço público) do que como poder de “autoridade” (administrativa, policial ou militar) sobre (e muito menos contra) as pessoas e a Natureza; em que o N deva ser entendido muito menos como nacional e muito mais como local; em que o P deva ser entendido, sim, como de “protecção” mas tanto quanto possível de protecção pela prevenção (e muito seria possível reestruturar nesse sentido, no plano organizacional, funcional e técnico) e não protecção (quase) só pelo “combate”; em que o C deva ser entendido, sim, como “civil” mas no sentido de articulação (inter)organizacional, técnica, tecnológica e de gestão e envolvimento das pessoas e não tanto, contraditoriamente, no sentido de preponderância ou sobreposição (e muito menos contraposição) organizacional e funcional, com rígida hierarquização administrativa(ista) ou militar(ista).

    Os factos demonstram que pelo menos o que precede tem sido mais ou menos “invisível”. E, no entanto, isto (ainda que não só isto, é óbvio que muito mais) é importante, é mais ou menos essencial.

    Talvez então convenha que, (também) quanto a incêndios florestais, as pessoas e a Política (com maiúscula)  reparem (analisem, reflictam, debatam, ajam) também nisto.

É que, sendo as pessoas e a Política o “coração” da sociedade e do Estado, talvez só elas consigam ver, reparar, dos incêndios florestais o essencial, visto que, como bem avisa a raposa em O Principezinho, “o essencial é invisível para os olhos: só se vê bem com o coração”.

Inspector do trabalho aposentado e dirigente de uma associação humanitária de bombeiros voluntários

 

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