Um Governo a leste da ameaça que paira sobre o país

Em Alijó, felizmente, não morreram pessoas. Mas o que aconteceu foi mau de mais para que o Governo continue a disparar para o lado.

Desta vez, o Governo não vai poder desvalorizar o incêndio de Alijó com a mesma negligência com que menorizou o assalto em Tancos. O pinhal que este fim-de-semana foi destruído no planalto do meu concelho era feito de árvores antigas, grandes, de enorme valor económico e ecológico. Era o pulmão verde da região, onde passei muitas tardes de Outono a apanhar cogumelos silvestres caminhando sobre uma manta húmida e fofa de musgos, onde as giestas e os tojos tinham por vezes dificuldade em sobreviver na penumbra permanente das copas frondosas.

Em Alijó, felizmente, não morreram pessoas. Mas o que aconteceu foi mau de mais para que o Governo continue a disparar para o lado. O que aconteceu no último mês em Pedrógão e em Alijó é mais do que suficiente para nos darmos conta de que, sem um plano de emergência que já devia estar no terreno, este ano vai ser devastador para a nossa floresta.

O início do incêndio, por volta das 2h da madrugada, é prova de que a sua origem tem mão criminosa. Nada que não soubéssemos: em Agosto de 2015, um terço dos fogos de Agosto começaram precisamente na hora mais fresca e calcula-se que um quarto das ocorrências tenha origem em actos criminosos. O que diferencia a tragédia de Alijó, como a de Pedrógão, não é, pois, a origem do fogo, mas a sua velocidade e ferocidade. O que torna a história de Alijó num caso ainda mais absurdo e inaceitável é que, sem ser necessário recorrer a comissões de inquérito independentes, podemos desde já suspeitar que as operações de combate foram marcadas pelo desnorte, pela incompetência e, uma vez mais, pela falha criminosa desse sistema delinquente chamado SIRESP.

Quando um incêndio é dado como controlado e passado muito pouco tempo irrompe com uma velocidade maior, é porque houve descuido no rescaldo — ou um erro de avaliação que tende a reduzir o nível de alerta das equipas de bombeiros; quando um incêndio galga uma via rápida com mais de dez metros de largura e se instala no outro lado, é porque quem comandava as operações foi incapaz de perceber que era nesse ponto, quando o fogo tendia a abrandar, que tinha de ser combatido. Quando comandantes da protecção civil não conhecem a orografia do terreno, os acessos, as localidades, a tipologia das florestas e dos matos, torna-se tudo mais difícil. Os relatos da descoordenação, do caos, das falhas durante o fim-de-semana são a prova de que o sistema não funciona.

E não funciona também porque, quando pela frente há paredes de fogo com dezenas de metros de altura a avançar a grande velocidade, os bombeiros e os comandantes pouco ou nada podem fazer. É aí que entra o Governo — ou melhor, em que o Governo se demite. Logo na manhã de Pedrógão, perante os relatos da proporção catastrófica das chamas, escrevemos que, para defrontar o perigo actual para uma floresta seca, fragilizada e desordenada, o país “precisa de uma energia, de uma determinação e de um conjunto de meios para debelar o problema que parecem estar para lá das nossas capacidades actuais”. Mas o pior seria cruzar os braços e achar que o nosso mais importante recurso natural renovável estava condenado. O que se verificou nesse incêndio, ainda antes da fase normal dos fogos, exigia, por parte do Governo, um plano de emergência que continua sem ver a luz do dia.

Depois de quatro anos de seca, com previsões meteorológicas cruéis para o estado da floresta, o que o Governo deveria ter feito era, ao menos, identificar as 15 ou 20 zonas de maior risco no país, criar legislação de excepção para intervir na limpeza das matas privadas (bastava criar alguns corta-fogos), mobilizar a engenharia militar, obrigar todas as câmaras a cumprir a lei de protecção das zonas residenciais e libertar recursos extraordinários do orçamento para acudir à calamidade — dizem os especialistas que com 50 milhões de euros muito poderia ser feito. O que era preciso era capacidade para perceber a situação de emergência e de excepção em que vivemos, criar uma estrutura leve e descentralizada e ir para o terreno.

O Governo preferiu defender-se dos ataques da oposição, a oposição preferiu deleitar-se com a aflição do Governo e a sociedade entreteve-se com a comoção sentida pelas vítimas de Pedrógão ou num jogo de passa-culpas que teve como momento mais lamentável a eleição do eucalipto como o bode expiatório de todos os males. Perdemos um mês e agora talvez seja tarde de mais para arrancar.

Agora, com o fogo de Alijó a mostrar que Pedrógão pode ser a regra e não uma excepção, resta cruzar os dedos, esperar pela clemência do clima e rezar para que uma catástrofe como a de 2003 não se repita. Porque se o pior acontecer, peçam-se explicações aos bombeiros e à ministra; mas aponte-se essencialmente o dedo a um Governo incapaz de perceber a gravidade da situação e de preparar o país para a enfrentar.

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