Portugal, a Alemanha e a identidade

A Alemanha é, paradoxalmente, um dos principiais motores e um dos principais riscos da Europa.

A gradual mas inexorável mutação de um mundo inter-nacional para um ambiente transnacional, interativo e global, gera fenómenos de hibridação cultural, económica, política e de segurança. As realidades mudam qualitativamente nesse plano e concorrem para transformar mentalidades, valores, perceções morais e éticas, modelos económicos e comportamentos. Subsequentemente regista-se uma evolução no plano da identidade de nações e indivíduos. A “construção europeia”, que no essencial consiste num processo de integração regional, projeta no seu espaço geográfico um semelhante fenomenologia.

Compreensivelmente, a evolução das identidades nacionais num mundo transnacional é um processo natural e espontâneo. A questão que se coloca no plano da criação de uma “identidade europeia” é a de avaliar se ela se está a formar espontaneamente (a única via legítima) ou se, pelo contrário, ela está a ser sub-repticiamente imposta aos cidadãos enquanto alguém tenta deliberadamente anular as identidades nacionais. A conclusão será talvez muito grave. Muito mais grave do que os cidadãos imaginam.

A Alemanha é, paradoxalmente, um dos principiais motores e um dos principais riscos da Europa. As iniciativas de integração europeia, no pós-Guerra, tiveram como inconfessado (mas sólido) objetivo central integrar a temida Alemanha numa cultura democrática e pacífica, num espaço regional económico e operativo comum e interdependente. Utilizando linguagem popular, pretendia-se colocar-se a Alemanha “sob controlo”, em interação com a Europa em lugar de a manter “à solta”. Procurava-se, assim, controlar a Alemanha e evitar riscos de nova guerra, o que, até agora, foi bem conseguido.

Contudo, hoje, de uma inicial “europeização da Alemanha”, passou-se, em algum grau, a uma “germanização da Europa”. A Alemanha é central nas decisões europeias e no financiamento da UE. O próprio alargamento da UE não é estranho a esse facto. Na realidade, os novos membros mais importantes que aderiram à UE em 2004, como a Polónia, a Hungria e a República Checa, eram já uma área de fortíssima influência alemã (onde o marco alemão era correntemente quase tão utilizado como as moedas locais), assim aumentando o peso específico da Alemanha na condução dos destinos futuros da Europa alargada.

Para muitos (pseudo) europeístas é um sacrilégio refletir sobre aquilo que deve, ou não, ser o futuro da Europa, como se questionar seja o que for no “processo europeu” seja, automaticamente, uma espécie de heresia a punir, um pecado mortal, uma peste perigosíssima, uma posição imoral. Na verdade, esse extremismo pedante, fanático, impositivo e inquisitorial é um dos grandes obstáculos a uma genuína e harmoniosa construção europeia. O obscurantismo e a promoção quase fascizante de conceitos de “pensamento único” nunca são inteligentes ou eficientes. Nem legítimos.

Não sou um eurocético. Acredito sinceramente que em muitos domínios (não todos) podemos criar economias de escala e sinergias que poderão ser úteis a todos os europeus. Porque a Europa em que acredito é aquela que é construída pelos cidadãos, não aquela que lhes é imposta.

Portugal é um país de gente de bons costumes que tem o desagradável costume de se deixar manipular e orientar por políticos e partidos. Quando o partido da simpatia de cada um decide a sua “orientação de voto”, milhões de portugueses obedientemente a seguem. É pena, porque este povo se demite da sua capacidade cívica, da sua dignidade e da sua personalidade. Outros povos são menos manipuláveis e não tremem perante a possibilidade de cometer o perigoso “crime” de desobedecer a um qualquer grupo de dirigentes partidários. Pensam por si. E, por definição, dessa forma definem e mantêm uma identidade própria. Portugal demitiu-se de o fazer. Encontra-se em perda de identidade. A culpa não cabe aos alemães; é dos portugueses em geral e, em especial, de uma classe política que afastou o povo português do seu alienável direito de decidir o seu futuro, livremente, sem a obstaculização de políticos que, antidemocraticamente, se julgam tutores de um povo.

Em contraste com o que é praticado em países menos evoluídos como Portugal, a Alemanha assenta o seu sucesso económico também na forma como trata bem os seus cidadãos e trabalhadores. Os alemães têm seis semanas de férias e auferem remunerações quatro vezes superiores às dos portugueses, enquanto são a economia mais competitiva da Europa e uma das mais competitivas do mundo. Em Portugal não se compreende, obviamente. Ninguém paga propinas no ensino público, desde a escola primária ao doutoramento. A assistência social dos trabalhadores alemães é excelente e gasta muito mais que a de Portugal, mas geralmente gera excedentes de milhares de milhões de euros. Enquanto outras nações pensam ser evoluído concentrarem-se nos serviços, a base industrial é o grande motor do poder económico alemão.

Portugal é um país em que, provincianamente, se dedicam as luzes da ribalta aos políticos, enquanto os melhores portugueses estão fora da política mas desaproveitados. A Alemanha é mais perspicaz. Perante a vulnerabilidade dos países do Sul da Europa, como Portugal, repletos de indivíduos de grande potencial num contexto de desemprego, a Alemanha corre a, metodicamente, recrutar nestes países técnicos para o seu país. Não quer políticos de Portugal; procura os portugueses bons, que em geral não estão na política.

Em síntese, contrariamente à generalidade dos outros países europeus, a Alemanha tem uma estratégia inteligente. Sabe o que quer e para onde vai.

É crescentemente óbvia a dificuldade que a UE tem em encontrar uma nova forma de protagonismo e de identidade num mundo que deixou de ser eurocêntrico, que é intensamente intercultural e que se constrói em torno de novos centros de poder económico, político e militar, que se afastam da Europa.

A União Europeia confronta-se com múltiplos problemas que lhe causam uma crise de identidade, num mundo que já não controla e que a ultrapassa crescentemente. Talvez os maiores problemas da Europa sejam, afinal, a sua paroquial visão política e a falta de compreensão estratégica das dinâmicas que estão a mudar o mundo neste novo século. A antidemocrática imposição aos cidadãos de uma visão única e indiscutível da Europa não é uma solução. Pelo contrário, é talvez o fim a prazo.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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