Exercícios para a reorganização do real

Sobre Studies on the Ecology of Drama, de Eija-Liisa Ahtila.

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

No seu mais recente filme, a competir no 25.º Curtas Vila do Conde, Eija-Liisa Ahtila propõe-se questionar os modelos de representação em cinema, através do que chama de “exercícios para uma mudança de pensamento”. Em Studies on the Ecology of Drama (2017) é Kati Outinen (actriz mais conhecida por filmes de Aki Kaurismäki) que nos conduz pela argumentação do filme, a qual segue uma linha ecologista para demonstrar que a nossa constituição enquanto seres vivos, o nosso corpo e respectivo aparelho de percepção, condicionam o modo não apenas como incorporamos o mundo, mas como o reconstruímos e devolvemos quando produzimos imagens e narrativas sobre ele.

A elaboração sobre a percepção e os modos de recepção é recorrente em Eija-Liisa Ahtila. Muito do seu trabalho, especialmente aquele produzido para o espaço de museu ou galeria (como o que apresentou em Vila do Conde – Tuuli – na Solar, Galeria de Arte Cinemática, em 2003), assenta na desconstrução dos mecanismos habituais de apresentação para criar dispositivos que interpelam o espectador exigindo-lhe um reposicionamento na recepção do objecto fílmico.

Neste filme-ensaio, há um despojamento aparente de artifícios plásticos, dramatúrgicos ou conceptuais: a autora é directa nas suas intenções – o questionamento de paradigmas, o levantamento de hipóteses –, e clara na proposta de demonstração – produção de exercícios visuais demonstrativos do discurso textual narrado. Mas todo o caminho de manipulação tecnológica da realidade que a autora pretende discutir e questionar está, por inerência, assente na própria construção ilusória do real centrada na percepção, no pensamento e na consequente construção humanos.

A autora segue, por isso, para um desafio à estabilidade e ao conforto do nosso ponto de vista. Coloca-nos em confronto com uma série de outras formas de apreensão do real para além da humana, tornando protagonistas o carvalho, o andorinhão ou a borboleta (esta última com a tarefa específica de descrever um processo de transformação, num mesmo ser, da sua própria essência ao longo de uma mesma vida). Aqui, todos são performers, devidamente referenciados no genérico (além da actriz e dos seres mencionados, os Performers Não-Humanos Sem Nome dentro e fora de plano), sublinhando o “tornar visível o invisível”, para que Ahtila quer chamar a atenção, num confronto de percepções que passam pela apreensão de tempo e espaço – elementos básicos da realidade e da construção fílmica.

Studies on the Ecology of Drama surge, pois, como um exercício de reposicionamento do homem no mundo, questionando a sua importância, ou a importância da sua perspectiva, na construção do real. Ahtila parte da ficção para falar da sobrevalorização que o homem atribui a si próprio na construção e interacção com o mundo em que vive. Não vive só, e todos os seres vivos são protagonistas igualitários desse mundo e vivem-no e percepcionam-no de formas diferentes. Como nos diz Kati Outinen a determinado momento: “Há vários mundos simultâneos no nosso planeta."

Texto editado por Jorge Mourinha

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