Morte de Liu Xiaobo mostra a "crueldade" da China

Vencedor do Prémio Nobel da Paz em 2010, o escritor e defensor dos direitos humanos tinha 61 anos. Estados Unidos e países europeus pedem a Pequim para libertar a mulher do preso político e deixá-la viajar para o estrangeiro.

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A foto de Liu e a cadeira vazia na entrega do Nobel Heiko Junge/Reuters

"Para onde vai a China no século XXI?", perguntava a Carta 08, manifesto que Liu Xiaobo ajudou a escrever e assinou antes de ser detido e acusado de “incitar à subversão do poder do Estado”, em Dezembro de 2008. Passaram quase nove anos e o país está longe do que terão sonhado os signatários: a morte do Nobel da Paz e mais conhecido preso político da China, na sua cama de hospital, num quarto cercado pela polícia paramilitar, soa como a mais brutal e autêntica resposta à pergunta inicial.

O que Pequim fez ao apelo à mudança da Carta 08 foi rasgá-lo e esmagá-lo, recusando quaisquer comentários enquanto o fazia. De caminho, destruiu ou silenciou os que acreditavam na mudança e ousavam defendê-la publicamente. 

Liu Xiaobo estava internado desde Junho, pouco depois de lhe ter sido diagnosticado, demasiado tarde, um cancro de fígado em fase terminal. A família fez saber que desejava ser tratado no estrangeiro, o Governo recusou, insistindo na recusa até mesmo ao fim, quando finalmente permitiu que fosse consultado por médicos estrangeiros; um alemão e um americano, que aconselharam a transferência para a Alemanha, onde Liu poderia receber melhores cuidados paliativos. 

"Mesmo à medida que a doença de Liu Xiaobo piorava, o Governo chinês continuou a isolá-lo e à sua família, negando-lhe a liberdade de escolher o seu tratamento médico", lamenta num comunicado Sophie Richardson, directora da ONG Human Rights Watch na China. "A arrogância, crueldade e insensibilidade do Governo chinês são chocantes – mas a luta de Liu por uma China democrática e respeitadora dos direitos humanos vai sobreviver."

A Human Rights Watch recorda que a última vez que um Nobel da Paz morreu sob detenção de um Estado aconteceu em 1938, quando o pacifista Carl von Ossietzki morreu de tuberculose vigiado num hospital na Alemanha nazi.

Para o Comité do Nobel da Paz "o Governo chinês carrega uma pesada responsabilidade pela morte prematura" do laureado. "Consideramos muito perturbador que Liu Xiaobo não tenha sido transferido para um hospital onde pudesse receber o tratamento médico adequado antes de estar em estado terminal", lê-se na declaração assinada pelo líder do comité, Berit Reiss-Andersen.

A China, que considerou a atribuição do Nobel a Liu "uma obscenidade", sempre o tratou como um "criminoso comum" – para o regime comunista não existem "presos políticos". Durante a cerimónia do Nobel, quando o comité norueguês deixou uma cadeira vazia no palco (medalha e diploma de Liu em cima), os ecrãs das televisões dos chineses ficaram negros. A notícia da sua morte, divulgada pela câmara municipal de Shenyang, cidade onde estava internado, chegou quando passava pouco das 21h em Pequim e não se seguiu uma só palavra do Governo,

Quando o Nobel chegou, Liu já tinha sido condenado a 11 anos de prisão – a sentença foi proferida no dia de Natal de 2009, quando muitos chineses estão de férias. Nenhum familiar foi autorizado a deixar a China para receber o prémio em seu nome. Pouco depois, a sua mulher, a poeta e fotógrafa Liu Xia, passou a estar em prisão domiciliária; segundo os amigos, vive há anos numa depressão profunda.

"Vai a China continuar com a 'modernização' debaixo de um regime autoritário, ou vai abraçar os valores humanos universais, unir-se à maioria das nações civilizadas e construir um sistema democrático? Não há como evitar estas questões", continua o texto da Carta 08, o documento que se assumia como uma homenagem à Carta 77 que Vaclev Havel e outros dissidentes checoslovacos escreveram em 1977.

A resposta, mais uma vez, pode descobrir-se no destino de Liu. Um defensor dos direitos humanos tão "extraordinário" como "representativo", escreveu no fim de Junho Tania Branigan, ex-correspondente do diário The Guardian na China. Desde a sua detenção, muitos mais foram presos ou acabaram por deixar o país. Liu, escreve Branigan, foi "a galinha" – na China, "as pessoas falam em matar a galinha para assustar os macacos, fazer de alguém um exemplo para avisar os outros".

Da prisão chegaram sempre escassas notícias. E mesmo depois do internamento muito pouco se foi sabendo do que acontecia no Hospital Universitário de Shenyang, na província de Liaoning (Nordeste da China, acima de Pequim). As poucas imagens que foram chegando mostravam o dissidente deitado na cama, num quarto que parecia estreito, e a sua mulher junto dele. Vários amigos do casal foram impedidos de entrar no hospital ou de viajar para a região.

Sempre que algum responsável do regime era questionado por jornalistas estrangeiros sobre o estado de saúde de Liu, a resposta repetia-se: "Opomo-nos a que quaisquer países interfiram na política interna da China a partir da utilização de um caso individual". O Presidente Xi Jinping temeu que a morte de Liu o apanhasse na cimeira do G20, há uma semana, quando diferentes ONG preparavam protestos contra o regime em Hamburgo e apelavam a que o fórum usado para pressionar Xi a libertar Liu.

Liberdade para Liu Xia

Num vídeo divulgado pelo Governo no início da semana, quando os médicos estrangeiros foram autorizados a consultá-lo, vê-se uma magra e apática Liu Xia, de costas, rodeada por médicos e enfermeiras. 

O comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein, foi o primeiro a apelar às autoridades chinesas para que deixem Liu Xia viver com liberdade de movimentos e viajar para o estrangeiro. O secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, defende precisamente que agora é urgente concentrar esforços em garantir que a mulher de Liu deixa de ser perseguida. Do Governo francês, o primeiro a reagir, chegou o mesmo pedido.

A Alemanha, que quis recebê-los antes, insiste agora para que Lia vá viver no país. "Peço ao Governo chinês que liberte Liu Xia da prisão domiciliária e lhe permita deixar a China, de acordo com os seus desejos", disse o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, um apelo ecoado pela líder dos Democratas na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, enquanto descrevia Liu Xiaobo como "uma das grandes vozes morais do nosso tempo".

Liu Xia pagou caro o seu amor ao marido: para além de encerrada em casa, viu a sua família perseguida e o irmão que a ajudava financeiramente a sobreviver preso e condenado a 13 anos de cadeia.

De Tiananmen a Liaoning

Ex-professor de Literatura na Universidade de Pequim, Liu Xiaobo nasceu em 1955 no Noroeste da China. Escreveu sobre a sociedade e a cultura do seu país, sempre focado na democracia e nos direitos humanos, primeiro na China, depois no estrangeiro, onde foi muitas vezes convidado para dar aulas. Era o que estava a fazer na Universidade de Columbia, nos EUA, quando começaram os protestos de 1989.

Liu voltou de imediato ao seu país e juntou-se aos estudantes na Praça de Tiananmen, organizando uma greve de fome em seu apoio. Quando a lei marcial foi proclamada, negociou com o Exército a saída dos jovens, mas estes recusaram. Depois do massacre, passou 21 meses na prisão, acusado de apoio aos estudantes (aos quais viria a dedicar o Nobel). Tinha 33 anos.

Voltaria a ser preso, desta vez num campo de trabalho, entre 1996 e 1999, por criticar a polícia chinesa em relação ao Tibete e ao seu líder espiritual, Dalai Lama. 

Encarcerado agora na prisão de Liaoning, onde cumpriu quase oito dos 11 anos a que foi condenado, poderia ter sido libertado quando lhe ofereceram o exílio em troca de uma confissão, depois do Nobel da Paz. Segundo o seu advogado, deixou claro que só aceitaria uma libertação incondicional.

"Herói do povo"

De certa forma, é como se Pequim tivesse decidido que Liu ia morrer como viveu, vigiado, controlado. Para o dissidente e amigo da família Hu Jia, o Partido Comunista não quis deixá-lo morrer em paz. "Até certo ponto, foi uma tentativa do partido mostrar a sua força, mostrar que podem controlar a nossa vida desde que estejamos na China", diz. 

Mas Hu Jia acredita que "a mensagem histórica que eles deixam é bem diferente" da desejada. "Ao permitirem que um Nobel da Paz morra sob a sua custódia perderam uma oportunidade para demonstrar humanidade e, em vez disso, provaram a sua natureza cruel."

"Liu Xiaobo não era um criminoso. Era um escritor, um intelectual e usou a sua vida para procurar formas de construir uma sociedade melhor", comentou Ai Weiwei, a partir do seu estúdio de Berlim, cidade onde o artista dissidente vive desde 2015. "A China mostrou quão brutal uma sociedade pode ser", afirmou ainda, descrevendo "um momento muito difícil para os defensores dos direitos humanos chineses".

No território de Hong Kong, a notícia levou umas 100 pessoas até à porta do gabinete do representante de Pequim. Demoraram uma hora a chegar e depois ali ficaram, todas em silêncio, algumas a chorar. 

Entre estes manifestantes, alguns erguiam cartazes onde se lia "o herói do povo, ele será lembrado para sempre", "o assassínio de um dissidente" ou "liberdade para Liu Xia".

 

 

 

 

 

 

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