O sabor amargo da Altice

Portugal precisa de investimento externo, mas dispensa piratas que olham para o país como uma periferia pobre onde ousam ensaiar estratégias que ditariam a sua morte no seu país de origem

1. Altice faz lembrar uma marca de geleia doce. Ou fazia. Conforme vamos sabendo dos seus planos para reduzir a força de trabalho do que resta da Portugal Telecom começamos a ter razões para suspeitar que a multinacional francesa pode ser apenas uma marca doce para embrulhar um produto amargo. Um produto feito de manha, de propensão para subverter as leis da República, de ardis e falsas promessas. Depois de ser fortemente pressionada pelos sindicatos em França num processo destinado a promover a redução de pessoal, o gigante das telecomunicações fez o que todas as empresas com responsabilidade social fazem: sentou-se à mesa das negociações e acordou um plano de rescisões voluntárias e indemnizações que podem variar entre dois e três salários por cada ano de trabalho, até ao limite de 20 anos. Em Portugal, qual potentado arrogante em territórios coloniais, a Altice tergiversa, esconde o jogo e vai lançando a rede para forçar os trabalhadores a aceitarem ser transferidos para terceiras empresas onde, após um ano ou dois, será mais fácil pressionar um despedimento.

Bem sabemos que a PT foi outrora a empresa que os defensores de uma economia privada saudável e responsável adoravam odiar. Na ex-PT e ex-Pharol vai haver uma greve este mês depois de muitos anos de paz social porque nos seus interstícios se viveram anos a fio de paz podre onde os recursos sugados à custa do monopólio, da troca de favores políticos e de manigâncias entre a estrutura putrefacta que a dirigia davam para calar toda a gente. Os sindicatos que agora protestam viveram bem com essa cultura predatória que encarava a empresa como uma cash cow. Os accionistas de referência ou nem tanto aproveitaram a seu modo esse maná e deliciaram-se com o pagamento de favores à administração ou ao dono daquilo tudo, o BES, através de chorudas entregas de dividendos (1500 milhões de euros, em 2010). Foi essa cultura irresponsável e criminosa que deu cabo de uma das melhores empresas do país. Hoje, sejamos honestos, a Altice não pode ser viável com os cerca de nove mil trabalhadores que constam no seu rol de pagamentos.

Mas a haver uma reestruturação, que seja feita de forma limpa (legal) e transparente. Tudo o que não tem acontecido até agora. Depois das primeiras notícias a alertarem para a iminência de um processo de despedimentos, o seu CEO veio a público mostrar indignação, dizendo: “Estou chocado. Não há plano de despedimento colectivo como vi na imprensa em Portugal. Não há qualquer plano”. Pode não haver um despedimento colectivo na ordem das muitas centenas ou de milhares de trabalhadores, até porque o Governo foi lesto em acalmar as hostes e a opor-se a um plano dessa natureza. Mas, sentindo-se talvez no clima fácil das repúblicas bananeiras, a Altice parece querer caçar com o gato o que não pode apanhar com o cão. É neste ponto que entra o estado de direito e a dignidade dos trabalhadores da companhia.

De acordo com os sindicatos e com o Bloco de Esquerda, que tem acompanhado de perto o processo, a Altice está a usar uma directiva europeia [“Transmissão de empresa ou estabelecimento”] transposta na legislação nacional para forçar a transferência de trabalhadores para empresas terceiras, nas quais, provavelmente, poderão ser mais facilmente despedidos passado algum tempo. No início de Junho, 37 trabalhadores da área informática da PT Portugal foram transferidos para a Winprovit; e no final desse mês, foi revelada a intenção de mudar mais 118 trabalhadores. Em tese, pode ser defensável afirmar que os trabalhadores transferidos mantêm os seus direitos na íntegra. Na prática, porém, é lógico subscrever a leitura dos sindicatos, para os quais esta transferência é apenas uma etapa num processo que mais tarde determinará o despedimento. Seja como for, o que não parece verdadeira é a garantia dada pelo CEO da empresa, quando afirmou que não há qualquer plano” para despedir.

Com 300 trabalhadores metidos numa “Unidade de Trabalho Temporário” onde não há funções atribuídas, com relatos de coacção moral a resultarem em autos movidos pela Autoridade para as Condições de Trabalho, o clima laboral na empresa aproxima-se do pesadelo. Está pois na hora de se exigir que tudo seja esclarecido – hoje, Paulo Neves, líder da empresa vai ao Parlamento. Proibir apenas por razões políticas ou convicções ideológicas que a empresa não se reestruture, como de alguma forma a declaração do primeiro-ministro sugeria, é um erro crasso; mas perceber que os poderes públicos estão a assistir ao acumular de indícios que apontam para abusos de poder e eventuais violações das leis da República sem mexer uma palha é um crime contra os portugueses. Portugal precisa de investimento externo, mas dispensa piratas que olham para o país como uma periferia pobre onde ousam ensaiar estratégias que ditariam a sua morte no seu país de origem.

2. Um dos mais evidentes sintomas da decadência da vida política acontece quando vemos o PS travestido de CDS, o PSD retocado com maquilhagem do Bloco e o PCP com os trajes habituais no PS. Aconteceu um desastre em Pedrógão, deu-se a vergonha de Tancos e assistimos a um festival de incoerências em torno da discussão sobre o putativo papel que as cativações do orçamento tiveram nessas ocorrências. O PS já nos tinha surpreendido a defender a bondade das cativações que chegaram ao valor astronómico de 940 milhões de euros. O Bloco e o PCP fizeram de PS na versão em luta contra a falta de investimento e lamentam que o ministro das Finanças apareça “como o Ronaldo das Finanças”, quando “há serviços debilitados”, de acordo com a sempre espirituosa Mariana Mortágua.

O momento mais triste deste espectáculo de transfiguração aconteceu, porém, quando António Leitão Amaro, do PSD, vestiu a pele do velho Bloco para associar “as cativações feitas pelo Governo em serviços públicos essenciais” a acontecimentos recentes e dramáticos. A "maior tragédia humana ocorrida com o incêndio de Pedrógão Grande" e o do roubo de armas na base militar de Tancos explicam-se por essas cativações, diz o partido que fez dos cortes o seu principal modo de vida.

Ao mudar de discurso, ou ao menos ao ajustá-lo à espuma do combate político do momento, o PSD e Pedro Passos Coelho estão a corroer a essência do projecto político que lhes deu a vitória eleitoral nas últimas legislativas. Um mínimo de coerência obrigariam o partido a manter a sua tese de que o país precisa de cumprir as metas do défice e do Pacto de Estabilidade para se tornar credível, custe o que custar. Não podia criticar o PS como o fez pelas cativações, a menos que tivesse a coragem de se opor à reposição de salários, de pensões e de impostos. Se seguisse o programa que lhe moldou a identidade (e lhe apagou o que restava de um legado social-democrata), o PSD deveria juntar-se aos que recusam ver o que se passou em Pedrógão ou em Tancos como um problema de dinheiro. Não o fez e deixou uma vez mais pairar sobre a sua cabeça a sensação de que o Diabo existe e veste cor de laranja.   

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