O Estado em pré-ruptura

Dir-me-ão que demissões nada resolvem. Todavia, a sensação de impunidade e de irresponsabilidade resolve muito menos.

O Estado português falhou. Falhou duplamente nas últimas semanas, em áreas onde não devia falhar, para com os portugueses e para com os nossos aliados internacionais, pondo em causa a nossa credibilidade enquanto Estado.

Tanto na catástrofe que assolou a região do Pinhal Interior, com consequências devastadoras, como no “assalto” ao Paiol Nacional de Tancos, foi o Estado português que falhou. E, independentemente das inspeções, exames ou averiguações que se venham a realizar, aqueles em quem confiámos enquanto país para nos salvaguardar de catástrofes, ou a quem confiámos a guarda de material de guerra, para a nossa segurança e defesa coletivas, falharam redondamente. Logo, terão (e deverão) de ser responsabilizados por isso.

Mas será que os atuais titulares — sejam eles políticos ou operacionais — serão as melhores pessoas para tutelar (ainda que difusamente) essas mesmas investigações, mantendo-se — teimosamente — em funções?

No incêndio de Pedrógão Grande ficou bem presente (infelizmente) e à vista de todos que todas as estratégias de ordenamento florestal e de proteção civil dos últimos anos em Portugal têm (e deverão) de ser repensadas, porque falharam.

Desta forma, não se compreende como três semanas depois, tendo-se registado 64 mortes, 250 feridos e milhões de euros de prejuízo, o país continue a assistir a um incrível “passa-culpas” dentro do próprio Ministério da Administração Interna, elemento central de qualquer Governo. Como é possível que a ministra — que há poucos meses reformulou grande parte da estrutura dirigente da Proteção Civil (incluindo novos presidente e comandante operacional nacional) — continue em funções, sem assumir devidamente as suas responsabilidades políticas?

Já no inexplicável e muito preocupante “assalto” ao Paiol de Tancos, muitas questões há ainda por responder, quer no seio do Exército, quer ao nível político. A segurança das suas instalações e, principalmente, do material de guerra à sua guarda, deverá ser das principais prioridades de qualquer Exército. Assim, independentemente do que se venha a apurar, é público e notório que o Exército português — que cumpre diária e garbosamente muitas missões por esse mundo fora — falhou na confiança que lhe foi depositada.

É importante reconhecer que o crescente desinvestimento a que sucessivos Governos votaram as Forças Armadas em geral, e o Exército em particular, nos últimos anos, acrescido do fim do serviço militar obrigatório, em muito contribuíram para a situação a que se chegou: uma situação limite em recursos humanos e financeiros. Contudo, se assim é, e se o Exército deixou de ter condições para cumprir duas das suas principais missões, quantos chefes militares colocaram perante o poder político, nos últimos anos, o seu lugar à disposição por esse motivo?

Claro que o caminho mais fácil é a exoneração dos cinco comandantes das unidades com responsabilidades pela segurança do paiol. Contudo, à semelhança do seu antecessor, e exercendo devidamente o seu dever de tutela, o chefe do Exército deveria, isso sim, ter apresentado a sua própria demissão, assumindo ele próprio a humilhante quebra de segurança.

Quanto ao ministro da Defesa, que, sob a proteção do politicamente correto, tão celeremente agiu seja no caso dos “afetos” no Colégio Militar, seja no caso das trágicas mortes nos Comandos, perante o maior incidente numa unidade militar de que há memória em Portugal, e sabendo antecipadamente dos riscos a que estava sujeito o referido paiol, não lhe restava outra alternativa que não apresentar a sua demissão, libertando o sector de um ministro que nunca verdadeiramente o compreendeu nas suas várias dimensões e facilitando todas e quaisquer diligências que possam ser realizadas para o integral apuramento da verdade.

Dir-me-ão que demissões nada resolvem. Todavia, a sensação de impunidade e de irresponsabilidade resolve muito menos e desacredita os alicerces das instituições, da nossa democracia e do Estado de Direito!

Se, nos últimos anos, a prevalência das questões económicas e financeiras provocou um desinvestimento gritante nas áreas de soberania, não deixa de ficar hoje à vista de todos que a consequência desse desinvestimento foi a pré-ruptura do Estado, nos seus elementos essenciais, Defesa e Segurança Interna. Vale bem a pena pensar nisto.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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