Só os antidemocratas receiam a democracia

Sem uma solução política, que inclua eleições livres, a Venezuela corre o risco de descambar de vez se o incêndio saltar das ruas para as paradas dos quartéis.

A ditadura não é uma estranheza na América do Sul. Com o beneplácito da política externa dos EUA, Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Brasil viveram sob regimes torcionários nas últimas décadas do século XX. A Operação Condor é uma recordação hedionda desses anos: os seis países perseguiram e assassinaram dissidentes de cada um deles que estavam refugiados em países vizinhos. O mundo a preto e branco da Guerra Fria talvez fosse mais inteligível do que o de hoje. Na aparência, pelo menos. O progressivo reconhecimento dos direitos humanos e o crescente processo de democratização quase fez esquecer esse passado sangrento, no qual os militares da direita mais conservadora faziam vítimas entre os militantes de esquerda. De um lado estava Pinochet e do outro Víctor Jara.

Com a excepção de Alberto Fujimori, como lembrava ontem no El Pais o jornalista argentino Ernesto Tenembaum, o continente não assistia desde estão a algo semelhante ao que está a acontecer na Venezuela: repressão sobre manifestantes (cerca de 90 mortos desde Abril), suspensão de eleições, detenção de dissidentes e de militares por serem alegados opositores do regime, fecho de meios de comunicação e ataques como o de um comando refractário contra edifícios do Governo e do Tribunal Supremo de Justiça ou o de anteontem ao parlamento. O crescendo do crime, o aumento dos preços, a corrupção e a escassez de medicamentos e de alimentos atinge, mais do que nunca, todos por igual e diminui as diferenças entre quem encara o clima de pré-guerra civil com a consciência de classe de quem habita num bairro rico ou num bairro pobre de Caracas.

Sem uma solução política, que inclua eleições livres, e a garantia de que os resultados são aceites democraticamente, a Venezuela corre o risco de descambar de vez se o incêndio saltar das ruas para as paradas dos quartéis e o país se transformar numa ditadura à moda dos anos 70. Para isso, era necessário que Governo e oposição aceitassem, como sugeriu o insuspeito Papa Francisco, reatar um processo de diálogo para sair deste imbróglio político: Maduro quer uma assembleia Constituinte para alterar a Constituição e os seus opositores marcaram para dia 16 um referendo a essa intenção. À semelhança do Brasil, a Venezuela precisa de eleições já.  Só os antidemocratas de um lado e do outro podem recear a democracia.

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