Os fantasmas do passado no cinema argentino

A sombra da ditadura militar, e dos seus milhares de mortos e desaparecidos, continua a pairar sobre a Argentina. Desse trauma se ocupam alguns dos filmes que até domingo passarão pelo Cinema São Jorge, em Lisboa, na terceira edição do AR – Festival de Cinema Argentino.

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La Larga Noche de Francisco de Sanctis, de Francisco Márquez e Andrea Testa

Pelo terceiro ano consecutivo, o cinema argentino tem o seu próprio festival em Lisboa. Durante quatro dias, entre 6 e 9 de Julho, o AR – Festival de Cinema Argentino mostrará no Cinema São Jorge dez filmes argentinos de produção muito recente, no que certamente constitui um muito válido observatório sobre uma cinematografia que, estando entre as mais ricas da actual América do Sul, não se esgota nem nas credenciais autorísticas de nomes como Lisandro Alonso ou Lucrecia Martel, nem na eficácia “proto-industrial” de alguém como Pablo Trapero, para apenas citarmos nomes de cineastas razoavelmente conhecidos em Portugal, até no circuito comercial. De resto, e como que atestando a vontade de descoberta (mais do que de reconhecimento) da proposta de programação do festival, a selecção inclui várias primeiras obras, e apenas um dos realizadores seleccionados possui já uma projecção internacional de monta (referimo-nos a Matias Piñeiro).

E de Matias Piñeiro ver-se-á, justamente, o filme mais “internacional” do programa, Hermia & Helena (dia 7, 22h). Piñeiro reside actualmente em Nova Iorque, e nessa cidade americana dirigiu parte substancial de Hermia & Helena, com vários actores americanos e diálogos maioritariamente em inglês. Hermia e Helena são nomes de personagens do Sonho de uma Noite de Verão, e a peça de Shakespeare está no centro do filme de Piñeiro, explicitamente pelo trabalho da sua protagonista (uma encenadora a trabalhar numa tradução espanhola da peça), implicitamente pela maneira como o ambiente e as citações se vão reflectindo e ecoando na vida da personagem. É uma forma curiosa de filmar o desenraizamento, e de descobrir uma Nova Iorque embebida da aura semi-mágica e sonhadora da peça, num filme que, pese a sua “deslocalização”, não deixa de incluir algumas preocupações e alguns fantasmas (a ideia de um passado não resolvido a influir sobre o presente, na história do pai biológico da protagonista) que reencontramos, sob diversas roupagens, noutros filmes do programa.

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La Idea de un Lago. Uma fotógrafa retoma imagens da sua infância — e lida com o “fantasma” do pai, presumivelmente raptado e morto pela polícia secreta da ditadura
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Hermia & Helena. A ideia de um passado não resolvido a influir sobre o presente também contamina o filme de Matias Piñeiro, na história do pai biológico da protagonista

O “passado”, muito explicitamente, é o tema de La Larga Noche de Francisco de Sanctis, de Francisco Márquez e Andrea Testa (dia 8, 22h). A acção passa-se no final dos anos 70, em plena ditadura militar, e põe em cena a questão do envolvimento e do compromisso pessoal com os abusos do totalitarismo: a história de um homem, de uma classe média discreta e ensimesmada que tenta passar por entre os pingos da chuva da política, e do momento em que tem de decidir se continua a fingir que “tout va bien” ou se passa à acção para salvar duas pessoas perseguidas, por razões políticas, pelo regime. A “larga noche” (“longa noite”) é tão metafórica como literal neste filme nocturno e em suspensão, onde no rosto angustiado do protagonista homónimo (o actor Diego Vélazquez) se estampam as dificuldades do relacionamento de uma sociedade com o seu escuro passado recente.

O tempo da ditadura é evocado ainda em La Idea de un Lago, de Milagros Mummenthaler (dia 6, 22h), filme sempre a oscilar entre a época contemporânea e uma época mais remota, e onde a memória, como flash mental ou como documento (fotográfico, por exemplo), está sempre a interferir com o presente. É a história de uma fotógrafa que prepara um livro sobre imagens da sua infância, em especial as imagens da casa onde, em miúda, costumava passar os verões, numa região idílica algures no Sul da Argentina. O “fantasma” é o pai, um dos muitos desaparecidos durante os anos 70, presumivelmente raptado e morto pela polícia secreta da ditadura. Pode ser também um cadáver, que é preciso identificar para além de todas as dúvidas, e assim “fechar” uma história que se manteve em aberto durante anos. Com delicadeza, Mummenthaler mescla os “ciclos” temporais, a sombra do passado a recair sobre a beleza da paisagem, uma hipótese de futuro (a gravidez da personagem central) em diálogo com um passado por resolver, a memória “imaginada” em confronto com a memória “factual”, a evocação melancólica de um ferida (ainda) por cicatrizar.

Também de um outro tempo fala Solar (dia 7, 20h), de Manuel Abramovich, porventura o filme mais bizarro de todo o programa. É um documentário, nada canónico, daquele género que passa por ser o seu próprio making of. Abramovich vai atrás de uma meteórica celebridade na Argentina do princípio dos anos 90: um (então) garoto que, com menos de dez anos, publicou um livro de “filosofia” de auto-ajuda espiritual que se tornou um best seller e fez dele uma vedeta dos talk-shows da televisão argentina. Vinte e tal anos depois, mais ou menos esquecido mas ainda a viver dessa glória episódica, o (agora) adulto é reencontrado por Abramovich, que com ele, num autêntico duelo, constrói este filme. Do que Solar eventualmente pretenderia ser – um documentário de “personagem”, um olhar sobre uma espécie de força irracional – ficam apenas alguns traços; o que toma o primeiro plano, num  montagem que tanto colhe em imagens pré-existentes como em imagens novas, é um confronto permanente entre “realizador” e “vedeta”, por vezes a alternarem posições, num filme feito como se a sua rodagem fosse um campo de batalha – caótico, desarticulado, e muito, muito singular.

Entretanto, no mundo rural

O seu par mais evidente no programa é La Cump4rsit4 (dia 9, 22h), de Raul Perrone, o filme mais deliberadamente “experimental” do programa. Pegando num dos mais célebres tangos (La Cumparsita), que se ouve bastante durante todo o filme, Perrone trabalha a interrogação da identidade nacional argentina, confrontando essa expressão (o tango) ao mesmo tempo muito profunda e muito superficial (no sentido folclórico) para escavar nas entranhas da história e contar, alusivamente, num fluxo de imagens (a preto e branco, sem diálogos ou som directo), um eterno relato de luta de classes, assente na oposição entre os grandes proprietários rurais e os camponeses. Um pouco “gráfico” na profusão de referências (das “vanguardas” propriamente ditas aos ecos do cinema mudo), o filme de Perrone não deixa de ser bastante singular na sua invenção de um “expressionismo” próprio, e alimentado a tangos.

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Solar. Documentário nada canónico, vai atrás de uma meteórica celebridade do princípio dos anos 90: um (então) garoto que, com menos de dez anos, publicou um livro de “filosofia” de auto-ajuda espiritual

Noutro registo, mas também olhando a ruralidade argentina, também é singular a proposta de Maria Aparicio, Las Calles (dia 9, 18h). É um filme feito com os alunos de uma escola de uma localidade argentina remota, um terra onde as ruas não têm nome. A missão do projecto desenvolvido com os alunos é baptizar as ruas – e entre muitas conversas, onde nem sempre é possível discernir o grau de encenação ou de preparação (o filme fica naquela linha entre a espontaneidade e a premeditação), assomam, mais uma vez, questões de memória histórica, e a fractura entre a sociedade argentina urbana e a ruralidade. Ruralidade que, na história entre um pai e um filho enquanto trajecto de distanciamento mais do que de aproximação, é também o fundo de Primero Enero, de Dario Mascambroni (dia 8, 18h). E finalmente, menção a Kekszakallu (dia 8, 20h), de Gastón Solnicki, que com um ponto de partida inesperado (a ópera de Bela Bartok, O Castelo do Barba Azul) relata uma história de adolescentes, algures num “castelo” relativamente luxuoso, em passagem para a idade adulta através, essencialmente, da descoberta da sensualidade e da sexualidade. Isso é dado com pudor, num registo de realismo vacilante, à beira de se converter em metáfora, reminiscente, por exemplo, de filmes como os do grego Yorgos Lanthimos.

O programa do AR – Festival de Cinema Argentino completa-se com dois filmes que não pudemos ver: Futuro Perfecto, de Nele Wohlatz (dia 6, 20h), e El  Rey del Once, de Daniel Burman (dia 9, 20h).
 

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