Kim põe em causa a lua de mel dos EUA e da China com novo míssil

Pyongyang diz ter realizado o primeiro teste de um míssil intercontinental, capaz de atingir os EUA. Para Washington chegou a hora de Pequim aumentar a pressão.

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Kim Jong-un a supervisionar um ensaio de míssil com vários cientistas militares KCNA/EPA

Num claro desafio a Donald Trump, o regime norte-coreano testou um míssil balístico intercontinental esta terça-feira, 4 de Julho, o Dia da Independência dos EUA - o primeiro que o Presidente celebra na Casa Branca. O ensaio realizado pelo regime norte-coreano fez com que o mundo voltasse a pesar as suas opções em relação ao país de Kim Jong-un.

O ensaio apanhou o Presidente chinês, Xi Jinping, em Moscovo, num encontro com Vladimir Putin. Os dois líderes anunciaram uma frente unida para travar Pyongyang através da via diplomática, contrastando com a atitude de Trump que não descarta o uso unilateral de força, ao contrário de outras Administrações americanas que não exibiam essa ameaça.

Segundo os jornais chineses, Xi e Putin "uniram esforços para forçar um acordo através do diálogo e da negociação".

A primeira reacção de Trump à notícia do lançamento do míssil intercontinental sugere que a sua estratégia para conter Kim exige a actuação forte de Pequim: “Talvez a China tome uma medida dura contra a Coreia do Norte e acabe com este absurdo de uma vez por todas.”

Há muito que se fala da possibilidade de o regime liderado por Kim Jong-un ter a capacidade de lançar um míssil balístico de longo alcance. Desde 2012 que nos desfiles militares do regime são exibidos mísseis intercontinentais (ICBM, na sigla inglesa). A generalidade dos observadores duvidou da veracidade dos engenhos que apareciam em público, mas nos últimos anos (Kim está no poder desde 2011), foram divulgadas imagens de componentes  para construir um ICBM. A questão deixou de ser se é possível a Coreia do Norte disparar um míssil com capacidade para atingir os EUA, mas sim quando poderá fazê-lo.

Para Pyongyang, o desenvolvimento de um míssil capaz de atingir território norte-americano coloca o regime mais perto do seu objectivo: tornar improvável um ataque preventivo norte-americano. O programa nuclear tornou-se uma questão existencial para a liderança norte-coreana, que vê nos mísseis e ogivas o seu seguro de vida. Para os EUA, diminuem as opções viáveis para conter a ambição de Kim.

Nos primeiros dias deste ano, o líder norte-coreano anunciou que o país estava preparado para testar o seu primeiro míssil balístico intercontinental. A poucos dias de tomar posse, Trump foi peremptório na resposta: “Não irá acontecer.” A estratégia que a nova Administração norte-americana tinha para lidar com o que rapidamente se tornou numa das primeiras prioridades da política externa envolvia um dos alvos preferenciais de Trump durante a campanha que lhe valeu a presidência – a China.

A cimeira de Mar-a-Lago, no início de Abril, em que Trump recebeu o Presidente chinês, constituiu um ponto de viragem na abordagem da Administração norte-americana em relação a Pequim. A convicção nos corredores do Departamento de Estado era de que o abandono da linha dura contra Pequim iria resultar numa pressão acrescida exercida pela China sobre a Coreia do Norte.

Fim da lua-de-mel

Três meses depois, a avaliação de Trump do esforço chinês é claramente negativa – desde a cimeira em Mar-a-Lago, Kim realizou cinco ensaios balísticos bem-sucedidos. As últimas semanas foram marcadas por uma visível degradação das relações entre a China e os EUA, que a generalidade dos analistas atribui à frustração de Trump por causa da Coreia do Norte. A morte do estudante americano Otto Warmbier, a 20 de Junho, depois de passar um ano numa prisão norte-coreana, exasperou especialmente Trump. No Twitter, a reacção do líder dos EUA foi dirigida para a China: “Apesar de valorizar os esforços do Presidente Xi e da China para ajudar em relação à Coreia do Norte, isso não está a funcionar. Pelo menos sei que a China tentou!”

O tweet foi visto como uma “indicação muito firme de que a lua-de-mel depois de Mar-a-Lago acabou”, dizia na altura à CNN o director do Programa de Segurança Internacional do Instituto Lowry em Sydney, Euan Graham.

Nos dias seguintes, os EUA aplicaram sanções a um banco chinês, acusado de financiar as actividades do Governo norte-coreano, nomearam a China como um dos principais responsáveis pelo tráfico de seres humanos, e anunciaram a venda de armamento no valor de 1,4 mil milhões de dólares a Taiwan. No domingo, um navio de guerra dos EUA passou perto de um arquipélago no Mar do Sul da China que Pequim considera parte do seu território, merecendo uma forte condenação do Governo chinês. Num telefonema entre os dois líderes no passado domingo, foram abordados “factores negativos” que afectaram as relações entre os dois países, de acordo com o Governo de Pequim.

Quando saiu de Mar-a-Lago, Xi era um homem satisfeito. No seu primeiro encontro com o Presidente norte-americano mais hostil desde o reatamento das relações diplomáticas, tinha assegurado uma espécie de tréguas sem muitos custos. “Os chineses tentaram perceber o que seria o mínimo que poderiam fazer” em relação à Coreia do Norte, disse ao New York Times a analista do Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais, Bonnie Glaser.

Apesar das críticas dos EUA, a China tem dado passos sem precedentes para pressionar o seu aliado a abandonar o programa nuclear. Em Fevereiro de 2016, pouco depois de um teste nuclear norte-coreano, a China votou a favor de uma resolução da ONU que aplicava fortes sanções contra o regime. Mais recentemente suspendeu a importação de carvão – uma das principais fontes de rendimento da Coreia do Norte.

A Administração Trump quer, no entanto, que a China vá mais longe e actue no âmbito do sector bancário do país que continua a conceder crédito ao regime norte-coreano. “A Administração sinalizou repetidamente que eles [Governo chinês] têm de fechar esses bancos e empresas de fachada no nordeste da China que apoiam a Coreia do Norte”, diz Glaser.

Os cálculos feitos pela liderança chinesa assentam num frágil equilíbrio. A pressão sobre Pyongyang tem de ser ao mesmo tempo suficiente firme para evitar o desenvolvimento completo do programa nuclear, mas não tão forte que leve ao colapso do regime.

“A capacidade da China para guiar de forma pacífica Kim Jong-un para uma posição favorável aos EUA é altamente exagerada”, disse à revista National Interest Eric Gomez, especialista do Instituto Cato.

A cimeira do G20 do próximo fim-de-semana será crucial para se perceber se os EUA desistiram definitivamente de dar a iniciativa à China para lidar com a Coreia do Norte. Xi e Trump poderão voltar a falar de Kim em Hamburgo. Mas para já, o Presidente dos EUA só tem encontro marcado, à margem da cimeira, com os aliados regionais que se opõem a Pyongyang, o Presidente sul-coreano e o primeiro-ministro japonês.

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