Movimentos e jogos de luz

Uma exposição notável de Carla Cabanas que prende a atenção e comove. E que não deve desaparecer sem ser vista.

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Há pudor no gesto de restituir vida às imagens em vez de acrescentar novas imagens ao mundo pedro dos reis
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Há pudor no gesto de restituir vida às imagens em vez de acrescentar novas imagens ao mundo pedro dos reis
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Há pudor no gesto de restituir vida às imagens em vez de acrescentar novas imagens ao mundo pedro dos reis

Com uma tenacidade discreta, Carla Cabanas (Lisboa, 1979) tem vindo a construir uma obra coerente e consistente. Desde 2005 que expõe de forma regular, trabalhando com a Galeria Carlos Carvalho e participando em projectos colectivos e institucionais em Portugal e no estrangeiro. Do seu percurso destacam-se momentos como O que ficou do que foi – O Álbum desconhecido, na Sala do Veado do Museu de História Natural e da Ciência, em 2012, ou Palavra Arquivada, no Arquivo Municipal de Lisboa-Núcleo Fotográfico, em 2014. E refira-se que, no próximo dia 15 de Julho, inaugurará a exposição individual A Matriz e o Intervalo no Instituto Cultural de Ponte Delgada, no âmbito do projecto Walk & Talk. A esta realidade nem sempre tem correspondido, contudo, a adequada divulgação pública do seu trabalho. Centrado na imagem fotográfica e explorando as questões da memória, do tempo, do olhar e da visão, tem passado injusta e razoavelmente despercebido a muitos espectadores.

Contra essa realidade, Mecânica de Ausência II, na Galeria Carlos Carvalho, com a curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, merece a curiosidade da visita e do encontro. É uma exposição notável que prende a atenção e comove, que não deve desaparecer sem ser vista. Constituída por uma instalação e três caixas de luz, surge na sequência de outra exposição, A Mecânica da Ausência I (realizada na Cooperativa de Comunicação e Cultura, em Torres Vedras), e, sobretudo, no contexto de uma prática que desde 2015 faz da intervenção sobre imagens pré-existentes o seu principal método. As exposições recentes são exemplares dessa abordagem: Carla Cabanas não produz e não mostra fotografias novas da realidade, apropria-se das fotografias que outros produziram para pensar a realidade estabelecida pela relação do sujeito com a própria fotografia. Há um pudor neste gesto de restituir vida às imagens em vez de acrescentar novas imagens ao mundo.

Para a presente exposição, utilizou diapositivos de um álbum de família, datado do início dos anos 80, que adquiriu na Feira da Ladra de Lisboa. Repositórios de intimidade e momentos privados que, em ocasiões especiais, serviram a lembrança e a rememoração de um grupo fornecem as imagens às obras. Composta de vários projectores e cortinas de tule (tecido fino e muito transparente usado em véus), a instalação desenha no espaço um labirinto diáfano, em que o espectador não apenas vê como é visto. Ele é o observador e, quando entra nesse labirinto, uma superfície onde se projectam as imagens de situações e momentos marcantes de vidas individuais e anónimas. Viagens, casamentos, nascimentos.

As imagens aparecem e desaparecem a um ritmo rápido e, se surgem nítidas na primeira superfície de tecido, desfocam-se no segundo antes de se tornarem, no terceiro ou na parede, em borrões coloridos, imagens turvas, ininteligíveis – como se tivessem uma duração e uma distância. A curiosidade é acompanhada por uma suave impotência. Não conseguimos ver tudo de uma vez, não há um ponto de vista seguro e soberano. Os rostos, as paisagens, os objectos, os lugares escapam-se ou escondem-se sob as sombras. Carla Cabanas confronta-nos com a impermanência e a perecibilidade das imagens na memória, mas também no mundo. Feitas com gosto, cuidado, amor, as fotografias acabariam abandonadas e talvez esquecidas, não fossem a acção e o trabalho da artista, retirando-os da esfera privada e doméstica, sem sacrificar a intimidade que eles documentam.

Numa sala contígua, mostram-se as três caixas de luz. Encontram-se tapadas, pelo que o espectador terá de espreitar se quiser ver. O efeito é o de um prazer contido, de uma vertigem desapontante. O olhar mergulha em imagens da mesma família, reflectidas por um espelho, mas quem vê não só não as pode modificar ou roubar, como é surpreendido. Há fotografados que devolvem o olhar ou que apontam a câmara ao espectador. Apanhado em flagrante, também ele se redescobre como um fotografado, uma imagem na memória de alguém. E, passada a decepção, aperceber-se-á, talvez, do tímido halo de luz e cor que rodeia cada caixa. Talvez seja isso que levará consigo do quadro vivo de rostos imóveis, do teatro de vistas animadas por movimentos e jogos de luz que é a exposição. Traços, traços de luz e de cor que só se apagarão quando também ele desaparecer.

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