E a Madeira? O ciclo infernal do fogo e da chuva

Estão a gastar-se rios de dinheiro nas muralhas da foz das ribeiras, no Funchal, que são o fim do problema, e nada se faz a montante, que é onde os problemas se iniciam.

Com os trágicos acontecimentos que afectam o continente português, é bom não esquecer outro território nacional, a Madeira, que também corre grandes riscos. A ilha da Madeira tem sido assolada, desde há uns anos para cá, por grandes tragédias provocadas quer pelos incêndios florestais, quer pelas chuvas torrenciais que causam enxurradas catastróficas.

Eu conheço bem a ilha, de que tanto gosto, onde vivi uns anos, primeiro como administrador Florestal do Funchal e Porto Santo, depois como arquitecto paisagista dos serviços regionais de Urbanização. Ainda não se falava em PDMs em Portugal e fiz parte da equipa do mestre arquitecto Rafael Botelho que elaborou o PDM do Funchal, concluído em 1969; ainda nem se conheciam os planos de ordenamento do território, e fui o principal colaborador do arquitecto Filipe Mário Lopes no Plano Preliminar de Ordenamento da Madeira, entregue em Março de 1974. Conheço as serras até ao seu mais recôndito lugar, e a estrutura urbana das povoações, incluindo o Funchal. Em Setembro, depois dos incêndios do Verão passado, escrevi uma carta ao presidente do governo regional, de que transcrevo o essencial:

“Mas eu não entendo por que é que de há mais ou menos uma década para cá se repetem estas tragédias. Durante anos e anos, incluindo aqueles em que lá vivi, nunca a Madeira conheceu tragédias com esta dimensão. Alguma coisa se deve ter passado para gerar condições que possibilitam as tragédias — possivelmente abandono da limpeza das matas e erros crassos na expansão urbana. Agora não são precisos mais relatórios nem mais comissões especialistas, é preciso agir e rapidamente. [...]

Sem querer tirar soluções da manga, e à distância, há medidas que deviam ser implementadas desde hoje — tratamento das encostas contra a erosão. Como? Com a construção de valas e cômoros segundo as curvas de nível e caso a caso, pois cada caso é diferente; e nas encostas muito declivosas onde é difícil ou impossível ou inconveniente construir o sistema de valas, seja então a construção de pequenas paliçadas perpendiculares ao declive. Depois é preciso intervir na correcção torrencial construindo barragens, mas isso já, antes que venham as enxurradas. [...]

Cá estou eu a fazer o que não gosto, dar sugestões como se as tirasse da manga, mas é só para ilustrar que há medidas eficazes e urgentes a tomar. Senhor presidente, se querem prevenir novas tragédias têm de actuar já. O solo das encostas ficou calcinado e endurecido, as primeiras chuvas escorregam sobre ele e rapidamente começam a arrastar detritos. Não há que enganar, é sempre assim. [...]

Acredite que as obras de correcção das encostas e das ribeiras, custem o que custarem, darão menos nas vistas mas darão resultados.”

Estive há poucas semanas na Madeira, e o pouco tempo não deu para verificar tudo, mas o que vi e as informações que obtive autorizam-me a dizer que pouco ou nada foi feito. A minha carta deve ter tido aquele despacho “Visto. Arquive-se”, que certamente outras propostas de técnicos locais devem ter apanhado.

Estão a gastar-se rios de dinheiro nas muralhas da foz das ribeiras, no Funchal, que são o fim do problema, e nada se faz a montante, que é onde os problemas se iniciam. Nem as cabeceiras das linhas de água, nem as encostas calcinadas, nem a construção de barragens de correcção torrencial nas ribeiras, nada do que pode evitar novas catástrofes foi realizado.

Há fotografias impressionantes, muitas do Dr. Raimundo Quintal, que é malquisto das autoridades por ser incómodo e interveniente activo nestas causas, que mostram inequivocamente as graves situações urbanas das encostas do Funchal, onde o casario cresceu de forma anárquica, ocupando leitos de cheia e reduzindo drasticamente as secções de vazão das linhas de água.

Com a situação da Madeira em pleno Atlântico, sujeita a tempestades quase imprevisíveis, as chuvas diluvianas ocorrem com frequência e as enxurradas torrenciais são a sua consequência. Sinceramente custa-me a perceber por que é que as pessoas com responsabilidades não compreendem o que é básico, como no continente ninguém quer compreender, a nível governamental, as causas dos trágicos incêndios que ocorrem.

Se voltar a haver as tais chuvadas na Madeira que provoquem tragédias, vamos voltar a ver as lágrimas de crocodilo dos responsáveis, que entretanto nada fizeram para as evitar. O ciclo infernal do fogo e da chuva vai continuar, quer queiram entender ou não. 

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