Maratona em frente ao computador para ajudar refugiados

Os smartphones são das poucas coisas que os refugiados conseguem trazer de casa. Mais de 100 pessoas juntaram-se na Gulbenkian para desenvolver soluções que usam novas tecnologias para os ajudar.

Fotogaleria
Além de engenheiros e informáticos, viam-se designers, gestores, advogados e médicos entre os participantes exaustos Daniel Rocha
Fotogaleria
Apesar do cansaço, não faltava motivação no evento Daniel Rocha
Fotogaleria
Dezenas de garrafas de refrigerantes vazias e copos de café completavam o cenário matinal da sala de exposições temporária do museu
Fotogaleria
Mais de 150 participantes passaram o fim de semana agarrados ao computador Daniel Rocha
Fotogaleria
É o segundo ano que a Fundação Calouste Gulbenkian organiza o Hack for Good

Há mais de 24 horas que Joana Fontes, 23 anos, e Pedro Alves, 21, não dormiam. Na manhã de domingo ainda estavam agarrados ao computador, mas era por uma boa causa: definir os últimos detalhes de um jogo para smartphone para pôr refugiados a interagir e a aprender línguas, uns com os outros.

A ideia – desenvolvida sem muitas pausas ao longo dos últimos dois dias – ia ser apresentada mais tarde a um júri, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A equipa, com quatro pessoas, estava a participar na segunda edição do Hack for Good, uma maratona digital com o objectivo de desenvolver soluções de tecnologia para melhorar o mundo. O tema deste ano centrou-se na crise dos refugiados.

“Às vezes caímos no erro de achar que as novas tecnologias e os smartphones só servem para afastar pessoas. Queremos mostrar que pode ser o contrário, precisamente, por ser uma ferramenta que todos têm no bolso e usam com frequência”, defendeu Pedro Alves.

Para muitos refugiados, o telemóvel – que é das poucas coisas que conseguem trazer de casa – é visto como um salva-vidas. Permite aceder a informação (jornais, notícias da família, direcções, associações de apoio), e guardar documentos e fotografias. Segundo um estudo das Nações Unidas, 68% dos refugiados em espaços urbanos têm um telemóvel com acesso à Internet. Em espaços rurais – onde 40% dos refugiados residem –, a posse de um smartphone é mais rara (22%), mas 80% dos refugiados têm acesso à rede, através de computadores dos anfitriões ou das instituições de apoio. As Nações Unidas querem aumentar estas percentagens.

“Pôr as pessoas à vontade para aprender através da tecnologia também é importante”, explicou Joana Fontes. O objectivo do jogo que criou é ajudar outros jogadores a adivinhar uma palavra através de uma sequência de imagens. “É fácil vermos as pessoas com quem estamos a competir como um inimigo. Não queremos isso.”

A equipa de Joana Fontes não foi a única que passou a noite em branco. Dezenas de garrafas de refrigerantes vazias e copos de café completavam o cenário matinal da sala de exposições temporária do museu, que albergou cerca de 150 pessoas, dividas em 35 equipas. Todos queriam descobrir novas formas de utilizar a tecnologia para ajudar.

Foto
A equipa de Pedro e Joana passou a noite a trabalhar Daniel Rocha

Além de engenheiros e informáticos, viam-se designers, gestores, advogados e médicos. Alguns eram estudantes, outros já tinham anos de experiência nas suas áreas. É o caso da equipa que viria a agarrar o primeiro prémio, que inclui cinco mil euros e o acesso a um programa de aceleração de ideias do Montepio.

“Queríamos utilizar o nosso conhecimento na área da saúde para criar uma aplicação que ligasse mulheres refugiadas, anonimamente, a um médico”, disse Daniela Seixas, 40 anos, especializada em neurorradiologia. Desde 2016 que se dedica a tempo inteiro à TonicApp, uma outra aplicação móvel, que junta profissionais na área da saúde. “Faltam médicos em tecnologia, quando faz todo o sentido tê-los empenhados a desenvolver soluções que utilizem as plataformas e novas tecnologias cada vez mais presentes em medicina. De tudo o que se pode fazer com os migrantes, se a saúde não estiver garantida, nada faz sentido.”

Ao longo do fim-de-semana, a ideia foi maturando, com base no contacto com refugiados e associações de apoio que vieram à Gulbenkian falar com as equipas. “A meio de sábado, mudámos o nome da aplicação por perceber que era uma questão sensível,” recorda Daniela Seixas. “Inicialmente ia chamar-se Tabib (médico em árabe), mas percebemos que isso podia causar alguns problemas porque nem todos os refugiados falam árabe e alguns vivem mesmo situações de conflito com a região e a própria linguagem. Mudámos para Cura.”

Apesar das críticas iniciais, os comentários e o interesse de outros profissionais de medicina pela aplicação motivou a equipa. Em menos de 24 horas, 68 médicos já tinham registado o seu interesse num site criado pela equipa. O número (que na altura da apresentação final tinha subido para 71) foi um dos motivos para o primeiro lugar.

“O Cura identifica claramente uma necessidade fundamental. É o primeiro passo. Deve-se encontrar um problema que se quer resolver antes de pensar em utilizar a tecnologia para ajudar”, justificou Jason Nadal, o responsável pela área de desenvolvimento e empreendedorismo da Microsoft Portugal, que foi um dos júris durante o fim de semana.

Além da aplicação Cura, o pódio foi ocupado pela Share your Meal (uma plataforma para juntar famílias de refugiados e portugueses a partilhar uma refeição), e pela equipa da Compta, uma repetente do ano passado, que este ano desenvolveu um sistema de tradução que transforma palavras em ícones universais que todos podem compreender. Perceberam que a ideia tinha potencial quando ouviram durante o evento a história de uma mulher refugiada que utilizava a calculadora para regatear com os donos das lojas. “Estas maratonas são um processo muito cansativo, mas obrigam-nos a crescer” diz Ricardo Tavares, 37 anos, da Compta. “Quando vimos para aqui é para trabalhar, passar o dia a experimentar coisas diferentes, ver ideias, e conhecer mais pessoas que querem utilizar a tecnologia para ajudar.”

Sugerir correcção
Comentar