Alugueres ainda contam pouco nas receitas do património

Termina esta segunda-feira o prazo do inquérito aos estragos causados por umas filmagens no Convento de Cristo. A cedência de espaços patrimoniais tornou-se um fenómeno rotineiro, lucrativo e desregulado? A verdade é que não é assim tão frequente, rende pouco e raramente provoca danos.

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Bruno Almeida

Uma edição do programa informativo Sexta às 9, da RTP, denunciou no início deste mês alegados estragos provocados no Convento de Cristo pela equipa do realizador Terry Gilliam, autorizada a usar o monumento de Tomar, classificado desde 1983 como património da humanidade, para as filmagens de The Man Who Killed Don Quixote. A controvérsia gerada pela reportagem televisiva, segundo a qual 42 botijas de gás propano teriam sido levadas para o interior do convento, alimentando uma fogueira de 20 metros de altura – a tutela abriu entretanto um inquérito cujo prazo de entrega termina esta segunda-feira –, veio dar uma súbita notoriedade àquela que é a mais invisível das actividades levadas a cabo nos monumentos e museus nacionais: o aluguer de espaços para fins tão diversos como jantares de empresas, desfiles de moda ou rodagens de filmes.

Também este mês, o Diário de Notícias noticiou que a gestão da directora do Mosteiro dos Jerónimos, Isabel Almeida, cuja comissão de serviço terminou em Janeiro, estava a ser investigada na sequência de uma auditoria que, segundo o Ministério da Cultura, detectara “várias irregularidades”. E também aqui estavam em causa os alugueres. Empresas às quais foram cedidos espaços no mosteiro teriam pagado mais a uma organização internacional que recupera edifícios históricos, a World Monuments Fund, da qual Isabel Almeida é vice-presidente, do que à própria Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). E os Jerónimos teriam ainda sido utilizados para festas privadas com entrada paga sem que a tutela tivesse visto um tostão. 

Se a estes dois episódios, ambos ainda a aguardar esclarecimentos mais definitivos, somarmos a recente polémica provocada pela utilização do Museu Nacional dos Coches como cenário do VExpo – Salão Internacional do Veículo Eléctrico, Híbrido e da Mobilidade Inteligente, temos uma sucessão de casos de natureza muito diversa. Mas que podem gerar a convicção de que o aluguer de espaços patrimoniais se está a tornar, em Portugal, um fenómeno corriqueiro, nem sempre devidamente controlado, e que presumivelmente gera receitas importantes.

Acontece que, tanto quanto o PÚBLICO conseguiu apurar, quer junto da DGPC, quer ouvindo várias personalidades com experiência no domínio do património, nenhuma destas eventuais percepções corresponde à verdade. O aluguer tem realmente aumentado nos últimos anos, mas está ainda longe de ser uma prática quotidiana, e o dinheiro que gera, não sendo irrelevante, constitui uma percentagem pouco significativa das receitas dos monumentos e museus.

Alugueres são 2% da receita

Segundo a directora-geral do Património Cultural, os 23 museus, monumentos e palácios dependentes da DGPC cobraram em 2016, no seu conjunto, 419.154 euros por cedências de espaços. “Não é um valor muito alto, mas também não se alugam estes espaços todos os dias”, diz Paula Silva. “É uma actividade irregular e que vive sobretudo de jantares de empresas, cocktails e eventos afins." As rodagens são menos frequentes, mas também mais lucrativas: a produtora de The Man Who Killed Don Quixote pagou 172 mil euros pela utilização de vários espaços do Convento de Cristo.

Num cenário de crónica asfixia orçamental até nem seria difícil imaginar que os alugueres pudessem estar a funcionar como um suplemento de oxigénio do qual já hoje seria difícil prescindir, mas os números não o confirmam: em 2016, adianta a directora-geral, representaram apenas 2,22% de toda a receita arrecadada pelos museus e monumentos directamente tutelados pela DGPC.

Uma situação que pode ser encarada de ângulos diferentes consoante a posição que se tenha sobre a cedência de espaços patrimoniais a privados. Os que acreditam que os museus e monumentos devem ser cada vez mais capazes de gerar receitas próprias tenderão a lamentar que o fenómeno seja ainda tão incipiente em Portugal. Os que temem que a generalização dos alugueres venha a “resultar na banalização de espaços identitários”, como Maria Ramalho, presidente da comissão portuguesa do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), dispõem de um bom motivo para argumentar que, além do mais, os ganhos não parecem justificar os riscos.

É certo que as receitas de bilheteira, impulsionadas pelo turismo, aumentaram muito significativamente, o que ajuda a explicar que a percentagem dos alugueres no bolo total não seja muito alta, mas mesmo em termos absolutos os proventos obtidos com a cedência de espaços, após terem dado um grande salto entre 2014 e 2015, subindo de 284.444 para 457.993 euros, até desceram ligeiramente em 2016.

Os monumentos mais requisitados para alugueres em 2016 foram, por esta ordem, o Mosteiro dos Jerónimos, o Palácio da Ajuda, o Museu dos Coches e o Mosteiro de Alcobaça. Mas as verbas dessas cedências são centralizadas na DGPC, que depois as distribui por todas as instituições que tutela. “A lei do enquadramento orçamental não permite a consignação da receita à despesa, mas uma parte acaba por ser reinvestida nesses locais”, explica Paula Silva. “Há sítios com muito mais receita do que outros, e se as verbas ficassem nos sítios que as geram, alguns serviços tinham de fechar”.

No Palácio Nacional da Ajuda, por exemplo, a procura tem aumentado e é cada vez mais internacional, diz ao PÚBLICO o director José Alberto Ribeiro, estimando que a média ande à volta de um aluguer por mês. “Cedemos salas para jantares de empresas ou galas de entrega de prémios, e é cada vez mais frequente sermos procurados empresas, e até universidades, estrangeiras”. A tabela de preços “varia com o tipo de utilização, o horário, e as diferentes salas que se pretende usar”, explica. Quem organiza os jantares traz as mesas, as cadeiras, o catering e todos os apetrechos necessários, mas “há funcionários presentes do princípio ao fim” e o uso dos espaços contempla “várias interdições”.

Sem adiantar números exactos, José Alberto Ribeiro diz que o montante conseguido com os alugueres “não é nada irrelevante” e admite que “gostaria que a lei voltasse a permitir que uma parte da receita ficasse no local, para ser reinvestida em áreas específicas, como a conservação, até porque isso seria também um incentivo à utilização deste tipo de eventos”.

Harry Potter no Panteão

Salvo os alegados estragos agora provocados em Tomar, que se resumiriam, segundo um comunicado conjunto de Paula Silva e da directora do convento, Andreia Galvão, a “quatro fragmentos pétreos” danificados e a seis telhas partidas, não há memória de que outras cedências de espaços tenham resultado em danos de monta. Mas não são só os riscos de segurança que preocupam Maria Ramalho. Lembrando que o despacho de 2014 que veio regulamentar e tabelar o aluguer de espaços patrimoniais “diz explicitamente que as actividades não podem colidir com a dignidade dos sítios nem perturbar o acesso dos visitantes”, a arqueóloga defende que “há muita permissividade” e acha que seria “uma questão de bom senso” não permitir, por exemplo, “jantares privados em sítios que são património mundial”.

A arqueóloga gostaria de ver os mecenas privilegiados na política de alugueres, e entende que o Estado só deveria ceder estes espaços para fins culturais. “O problema é que se mistura tudo, de jantares e cocktails a televisão comercial”, afirma.

São raros, no entanto, os alugueres que geraram alguma polémica pública, e mesmo esses, por norma, dividiram opiniões. Luís Raposo, presidente do ICOM [Conselho Internacional de Museus] Europa, foi um dos que criticaram, a par de Maria Ramalho, a organização da VExpo no Museu dos Coches, lamentando que se tenha levado uma iniciativa de carácter comercial para o interior do museu, misturando uma colecção de coches antigos única no mundo com automóveis do século XXI. Mas nem todos pensam do mesmo modo. Paula Silva lembra que a iniciativa “tinha uma duração limitada” e abordava “questões cívicas relevantes”, como a mobilidade sustentada. “Não vejo nenhum problema na compatibilização do novo com o antigo”, diz, lamentando que “um objectivo importante tenha sido sabotado pela polémica que se criou”.

Mesmo um episódio no qual a “colisão” com a dignidade do sítio poderia parecer mais óbvia, como o que ocorreu em 2003 no Panteão Nacional, quando a editorial Presença ali recriou a escola de feitiçaria frequentada por Harry Potter para a festa de lançamento de um novo livro da saga de J. K. Rowling, originou juízos divergentes. Indignado, o então deputado socialista José Lello chegou mesmo a levar o caso ao Parlamento, mas entre os que defenderam publicamente a decisão contava-se, por exemplo, o escritor e editor Francisco José Viegas, que viria a ser secretário de Estado da Cultura.

Maria Ramalho evoca alguns exemplos de grandes museus e monumentos internacionais que praticarão políticas de cedência de espaços mais restritivas e criteriosas, como o Museu do Prado, em Madrid, o Palácio de Versalhes ou a Galeria dos Ofícios, em Florença, e observa que o English Heritage, no Reino Unido, só aluga espaços em oito dos 400 edifícios históricos que gere. Mas também não faltam exemplos em sentido inverso. O Louvre tem uma estratégia assumida de atrair projectos cinematográficos – só em 2013, acolheu 120 rodagens – e um dos seus percursos expositivos mais procurados pelos visitantes foi construído a partir do filme O Código Da Vinci, de Ron Howard, baseado no best-seller de Dan Brown. Uma ideia que não choca Paula Silva: “Não pode ser esse o objectivo de uma política patrimonial, mas é um modo mais lúdico de nos apropriarmos do património”.

O último filme de Oliveira

Para Maria Ramalho, o principal problema, em Portugal, está na “suborçamentação da Cultura, que cria uma situação de miserabilismo em que se tem de recorrer a tudo para fazer dinheiro, e alugar é o mais fácil”.

A arqueóloga evoca o exemplo de reconhecido sucesso que tem sido a gestão da sociedade anónima de capitais públicos Parques de Sintra – Monte da Lua (PS-ML), que tutela os palácios nacionais da Pena, de Queluz e de Sintra, entre vários outros monumentos e parques da região, elogiando “o bom trabalho que está a fazer, designadamente na recuperação dos espaços”. Mas lembra que “no tempo em que estes sítios ainda estavam na esfera do Ministério da Cultura, as burocracias eram muitas, não era possível contratar sem vistos das Finanças, e o dinheiro que entrava tinha de ser distribuído”. Ora, argumenta, “a partir do momento em que se recorre a uma máquina de fazer dinheiro e se reinveste nos próprios espaços, tudo se torna mais fácil, mas o que se devia fazer era criar condições para que estas coisas funcionassem sem ser necessário retirá-las da órbita do Estado”.

António Lamas, que dirigiu a Parques de Sintra – hoje liderada por Manuel Baptista – e foi o grande responsável pela concepção do projecto, não tem dúvidas de que este modelo “permite uma gestão mais flexível e expedita” e concorda que “o problema dos directores de monumentos e museus é terem pouco dinheiro” e, no que respeita aos alugueres, “pouca capacidade para negociar valores e impor condições”. Mas a conclusão que tira é a inversa da que propõe Maria Ramalho. O que o Estado deveria fazer seria replicar a experiência da PN-ML. E nota que, em Lisboa, já existe uma entidade, a EGEAC, “que gere de forma bastante semelhante vários museus e salas de espectáculos da cidade”.

Numa sociedade que vive exclusivamente das receitas que gera, sem nenhuma contribuição do Orçamento de Estado, e que dispõe de espaços particularmente atraentes para vários tipos de utilizações, como os palácios da Pena ou de Queluz, seria de esperar que, ao contrário do que acontece na DGPC, o impacto financeiro dos alugueres fosse bastante significativo. Lamas não dispõe de percentagens actualizadas, mas assegura que dos 27 milhões de euros arrecadados pela PN-ML em 2016, a quota parte devida aos alugueres é pouco relevante. “Sintra vive do turismo e as bilheteiras são a principal fonte de receita”, diz. “Depois temos a restauração, que é outra fonte de receita muito importante, a seguir as lojas, e só em quarto lugar vêm os alugueres”.

E acha que é bom que assim seja, porque “os alugueres não são a melhor solução para o património visitável, e não devem ser a prioridade”. Alerta, em especial, para a “especial cautela que é preciso ter com as rodagens de filmes, que causam um desgaste brutal no património e apresentam sempre riscos difíceis de contrariar nos contratos”.

Já tinha esta opinião no final dos anos 80, quando foi director-geral do então Instituto Português do Património Cultural (IPPC), mas houve uma ocasião em que essa consciência dos perigos envolvidos não lhe serviu de muito. "O Manoel de Oliveira queria filmar Os Canibais no Palácio da Ajuda. Aquilo metia fogos, o edifício não tinha saídas de fumo adequadas, havia outros riscos, e redigi uma informação negativa”, conta. “Mas do Presidente da República, Mário Soares, ao Governo, todos me diziam: ‘desculpe lá, mas é o último filme dele e vamos mesmo ter de autorizar’”. Os Canibais foi mesmo rodado na Ajuda. “Perdi essa guerra, mas felizmente acabou por não acontecer nada." Salvo, claro, os 27 filmes que Oliveira realizou após Os Canibais, se contabilizarmos apenas as longas-metragens.  

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