Tout va très bien, senhor ministro

A sucessão de "casos" que vem assolando o nosso património cultural dá que pensar. E a postura nonchalante do ministro da Cultura em face dos mesmos também.

Em cançoneta que ficou como hino às avestruzes, antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial, um mordomo sossegava a sua ausente patroa, dizendo-lhe “tout va très bien, madame la marquise” – não obstante o rol de desgraças que iam acontecendo, até ao incêndio total do castelo. Ocorre-nos este paralelo ao tomarmos conhecimento da sucessão de “casos” que vem assolando o nosso património cultural e das intervenções do ministro da Cultura em face dos mesmos.

No caso das gravuras rupestres do Côa, nada de substancial disse o ministro sobre a Fundação agora recauchutada e vamos a ver se efectivamente reforçada com o contributo da Ciência, que pode realmente ser decisivo, mas com tudo o resto destinado a correr mal: apenas um presidente a tempo inteiro (alguém nomeado por confiança política, para ganhar como director-geral), numa administração onde ninguém percebe de arqueologia, museus, património ou mera gestão cultural (mas que deixa contente situação e oposição, que localmente se alternam); escassez extrema de pessoal (parte “emprestado” da Direcção Regional de Cultura do Norte); sem projectos aprovados para financiamento europeu; com um conselho consultivo pouco mais do que decorativo… e também sem director do museu (que em todo o caso o ministro garantiu ir ser recrutado por concurso público internacional – o que se saúda). Já quanto aos danos de que foram alvo as gravuras, foi enfático o ministro: não se pode ter um guarda em cada gruta (sic) e vândalos existirão sempre – no que ficamos a saber que podemos dispensar a polícia e a GNR por esse país fora. Nada de preocupante, pois. É como diz a canção: “Tout va très bien, madame la marquise”.

Quanto aos serviços de Arqueologia Naval e Subaquática, saiu da cartola que passarão para Xabregas, uma espécie de fim-de-linha, com custos de adaptação estimados em cerca de um milhão de euros, para obra a durar um ano. Haverá dinheiro europeu, faltando apenas acrescentar que tal dinheiro, se chegar um dia (o que em si é duvidoso), destina-se à formação de quadros técnicos… e não a pagar alvenaria e trolhas. É como diz a canção: “Un tout petit rien, madame la marquise”.

O que se passa nos Jerónimos é caso de polícia e, como se viu já, o ministro não quer nada com gendarmes. Ficamos, pois, a saber que se comporta como causídico, abdicando da responsabilidade política de tomada de posição imediata, e considera não comentável a existência dentro dos monumentos de entidades de direito privado, capazes de alugar espaços e de receber as respectivas rendas. Poderá aqui ou ali haver situações que relevem do foro criminal ou cível? Talvez, mas é como diz a canção, “un incident, madame la marquise”.

Em Tomar a coisa pia mais fino, quer dizer, quase imperceptível: uma fogueira de mais de uma dúzia de metros de altura resume-se a fogacho pirotécnico; mais de quatro dezenas de garrafas de gás, que nenhuma ASAE autoriza em casa de pasto, são, como diz a canção, somente “une bêtise, madame la marquise”.

E, havendo espaço, poderíamos ir por aqui fora, citando exemplos como o dos automóveis plantados nas galerias do Museu Nacional dos Coches – o menos grave de todos, convenhamos.

Tanta acumulação de “casos” dá que pensar. E não é preciso muita perspicácia para ver o que os une a todos: uma mistura explosiva de falta de meios e ideologia liberal mercantilista, promotora do “fazer dinheiro” a todo o custo, algo que muitos dirigentes, por convicção ideológica, espírito escutista ou mero instinto de sobrevivência já incorporaram, legitimando o uso dos espaços como centros comerciais multiusos. Situação com que estranhamente o actual ministro parece conviver bem, na sua postura nonchalante de desvalorização do que realmente acontece e anúncio para as calendas do cumprimento do programa do Governo (como o fez mais recentemente em relação aos modelos de gestão dos museus nacionais).

Na verdade, tudo ajuda a que proceda assim. O regime político favorece cada vez mais este tipo de encenações: constroem-se anéis de segurança à volta dos ministros, uns dentro de casa, nos seus gabinetes, outros no próprio Parlamento, que não tem condições para aprofundar as matérias, e o contraditório, ou a mera cooperação, com quem domina os assuntos ou não existe ou é feito a destempo e sem consequências práticas. Depois admiram-se os espíritos bem pensantes com a descrença dos cidadãos na política; ou com aquilo a que chamam de judicialização desta – talvez a única forma de responsabilizar os governantes ou de obter a documentação que se omite perante os cidadãos e até perante os deputados.

Assim vamos, pois, no património cultural. Sintomas acumulados da falência de políticas? Claro que não: pequenos nadas, apenas. “Tout va très bien”, senhor ministro.

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