Exigências inaceitáveis ao Qatar antecipam agravamento da crise no Golfo

Há muitas perguntas ainda sem resposta sobre o que poderão fazer os países envolvidos no conflito em curso na região. Por exemplo, até onde pode ir o Irão, verdadeiro alvo dos sauditas.

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Trump numa reunião do Conselho de Cooperação do Golfo, que integra sauditas e qataris Reuters

A mais grave crise no Golfo Pérsico desde a invasão do Kuwait, em 1990, não dá mostras de abrandar. Antes pelo contrário, avisa Steven Cook, do Council on Foreign Relations: “Isto vai ocupar-nos grande parte do Verão – e bem para lá disso, na verdade”. Uma afirmação confirmada pelas 13 exigências apresentadas ao Qatar pelas quatro nações que a 5 de Junho impuseram um bloqueio ao país.

O silêncio do Qatar face à lista que o Kuwait, mediador da crise, lhe fez chegar é revelador. O pequeno e rico país já avisara que não negociaria sob bloqueio: a Arábia Saudita encerrou a sua única fronteira terrestre, pela qual passam 40% das importações dos qataris, e o conjunto de países que cortou relações com Doha (além dos sauditas, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egipto), fecharam-lhe as águas territoriais (é dos portos dos Emirados que chegam com regularidade ao país cargueiros carregados de bens) e o espaço aéreo, expulsando ainda os qataris que se encontram nos seus territórios. O Qatar importa 90% dos alimentos que consome.

Ora, as potências árabes não só não declararam o fim do bloqueio como decidiram pôr o Qatar de joelhos, exigindo, no fundo, ditar a sua política externa e um pouco mais do que isso.

Para além do encerramento da televisão pan-árabe Al-Jazira (o canal de notícias mais visto no mundo árabe), que Riad considera uma ferramenta de propaganda contra o seu próprio Governo, da lista de exigências faz parte encerrar uma base turca no país, diminuir fortemente as relações com o Irão e, algo nunca visto nesta parte do mundo, o pagamento de “indemnizações por perdas de vidas ou financeiras causadas pela política do Qatar nos últimos anos”.

"As exigências são tão agressivas que praticamente impossibilitam uma resolução para o conflito", diz à Reuters Olivier Jakob, consultor da Petromatrix, um think tank especializado em mercados petrolíferos. 

Hashem Ahelbarra, veterano correspondente para o Médio Oriente da Al-Jazira Internacional, não duvida que a lista “vai definitivamente ser rejeitada” pelo Qatar. “É uma questão de soberania nacional. Tudo o que for considerado uma interferência nos seus assuntos internos vai ser rejeitado”, defende. Ahelbarra nota em particular que “a exigência de compensações monetárias leva a região para um futuro desconhecido”. Indemnizar exige assumir erros, sublinha. “Isto não tem precedentes. E se os qataris disserem que os sauditas têm de pagar compensações por todos os civis mortos no mundo? Isto é surreal”.

Para além de dizer que não negociaria sob bloqueio – os turcos têm feito chegar ao país os bens necessários desde o encerramento das fronteiras –, o Qatar também já tinha dito que nunca aceitaria encerrar a Al-Jazira. O canal, financiamento pela família no poder desde a abertura, em 1996, mudou o espaço público desta região, dando voz a críticos dos regimes (com excepção do Qatar) e a israelitas, chocando monarcas e presidentes habituados a controlar a informação.

Ultimato e preço a pagar

Como se as exigências escritas não bastassem para pressionar Doha – que tem dez dias para responder afirmativamente ou a lista perderá a sua validade –, horas depois da sua divulgação, o ministro de Estado para os Negócios Estrangeiros dos Emirados escreveu no Twiter que “há um preço a pagar por anos de conspiração e há um preço pelo regresso à vizinhança”.

A par do homólogo saudita, Adel al-Jubeir, o ministro da federação de sete emirados, Anwar Gargash, tem sido o mais activo político desta crise. “Seria mais sábio se o Qatar levasse a sério as exigências e as preocupações dos seus vizinhos. Se assim não acontecer, o divórcio será efectivo”, ameaçou o ministro.

Se o Qatar se manteve em silêncio, a Turquia respondeu que o encerramento da base no país não está nos seus planos, explicando que esta presença militar é tanto para seu benefício como para protecção do aliado e garante de estabilidade regional. Quem também não reagiu de imediato foi Washington, que tem no Qatar 11 mil soldados, o comando regional (CENCOM) e o quartel-general da sua Força Aérea no Médio Oriente – foi a partir da grande base americana do país que os Estados Unidos coordenaram a invasão do Iraque, por exemplo.

Acusações sem provas

A abertura desta linha de confronto com o Qatar, que surpreendeu o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, terá sido aprovada pelo Presidente Donald Trump na sua visita a Riad, no fim de Maio. Já Tillerson tem apelado às partes para negociarem de forma razoável, dizendo-se mesmo “atónito” com o facto de estes países romperem relações com Doha sem fornecerem quaisquer provas do apoio a terroristas e das interferências nos seus assuntos internos que dizem justificar o seu isolamento. Acusações que facilmente se viram contra os acusadores – apesar de Riad garantir que deixou de financiar terroristas e jihadistas nos últimos anos.

“Neste momento, assalta-nos uma simples questão: São estas acções justificadas por preocupações sobre o alegado apoio do Qatar ao terrorismo ou prendem-se com antigas discórdias, até aqui a ferver em lume lento?”, questiona uma porta-voz do Departamento de Estado citada pela emissora britânica BBC.

O Qatar não é um peão inocente apanhado entre a grande luta pela hegemonia regional entre as potências sunita, a Arábia Saudita (aliada aqui ao Egipto), e xiita, o Irão. Há muitos anos que Riad e os restantes países olham para a política independente adoptada pelos qataris com preocupação, receios agudizados com o apoio dado por Doha a alguns dos grupos envolvidos nas revoltas árabes de 2011 (incluindo a Irmandade Muçulmana, que chegou ao poder no Egipto para depois ser derrubada por militares apoiados por Riad).

Mas o Irão não deixa de ser o alvo principal do bloqueio imposto ao país com o rendimento per capita mais elevado do mundo, 129 mil dólares (115 mil euros) por ano. “Termos de enfrentar a agressão ao Irão, que quer dominar a região”, afirmou em Abril de 2015 Adel al-Jubeir (então embaixador nos EUA), horas depois de o seu país ter começado a bombardear o Iémen. Qatar e Irão exploram em conjunto gigantescas reservas de gás.

EUA, Síria e desagregação

Nos últimos anos, a Arábia Saudita começou a exigir com acções ser levada a sério como líder regional. Uma tendência exacerbada pela Administração de Barack Obama, com o seu desinvestimento militar na região e a negociação de um acordo nuclear com os iranianos. Capaz de provocar um conflito de dimensões imprevisíveis, a intervenção no Iémen integrava-se facilmente nesta lógica de prova de força – afinal, Riad percebeu que o velho pacto (segurança em troca de petróleo) verbal no centro da relação com Washington podia estar a mudar.

Mais surpreendente e imponderável pode ser esta crise com o Qatar. Membro do Conselho de Cooperação do Golfo (a aliança económica e política formada em 1981 pelas monarquias petrolíferas do Golfo, precisamente para conter o poder iraniano), o Qatar é um importante aliado dos EUA na região e tem sido elogiado pelo seu papel no combate ao terrorismo, na Síria e não só. Aliás, os qataris integram a coligação internacional formada pelos sauditas para combater a oposição iemenita (alegadamente “uma marioneta” do Irão).

O que esta crise vem pôr em evidência é um Médio Oriente em acelerada desagregação, onde sauditas, turcos e iranianos se digladiam por poder e influência num espaço onde os EUA contam menos e as alianças se abrem à Rússia, China ou Índia. Em pano de fundo, está a guerra na Síria, que cada vez tem menos de síria e se tornou num confronto onde cada potência presente tenta garantir território para os seus aliados no terreno.

Certo é mesmo que esta crise está para durar e que, por enquanto, ninguém admite que se resolva através de uma acção militar. Mais provável é um prolongado impasse alimentado a golpes de retórica, mas há ainda muitas dúvidas sobre as medidas que os diferentes envolvidos estarão dispostos a tomar.

“Até que ponto é que a ajuda turca [envio de bens para contornar o bloqueio] é sustentável?”, questiona Steven Cook, interrogando-se igualmente sobre o que serão cedências aceitáveis para o Qatar. Para o analista americano falta ainda responder a uma outra importante pergunta: “Até onde estarão os iranianos dispostos a ir para explorar este problema a seu favor?”.

 

 

 

 

 

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