“Vi uma pessoa sair do carro com a roupa a arder. Por que é que eu me fui salvar?”

Mário mandou a mulher e as filhas fugir do fogo e viu-as morrer. Em Várzeas, Pedrógão Grande, há uma casa com a mesa posta para nove pessoas que ninguém sabe onde estão. E há quilómetros e quilómetros de terra carbonizada e sobreviventes desorientados.

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Mário Pinhal, que perdeu a mulher e as duas filhas Daniel Rocha/Público
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Gunnar Pfabe, cidadão alemão, fixado há oito anos em Troviscais Daniel Rocha/Público
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O casal António Rosa e Carminda Bernardes Daniel Rocha/Público
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Daniel Rocha/Público

Mário Pinhal, um dos poucos sobreviventes da “estrada da morte”, onde o fogo de Pedrógão Grande deixou dezenas de pessoas carbonizadas, recua até ao momento em que tomou a pior decisão da sua vida. “Quando me apercebi que o incêndio era muito violento e que os eucaliptos estavam a tombar e a serem sugados pelo fogo, disse para a minha mulher: ‘Prepara as miúdas e agarra no carro que têm que sair daqui para fora’.”

Este “daqui para fora” refere-se a uma casa nova, no lugar das Várzeas, com vista privilegiada sobre um monte reduzido a cinzas ainda fumegantes. O eucaliptal tombado, a vegetação seca do calor, casas e carros ardidos. Mas a casa de Mário, da mulher e das filhas, Margarida e Joana Pinhal, não chegou a ser tocada pelas chamas. “Por que é que não as mandei fecharem-se na cave? A casa é nova e teria aguentado.” A mulher obedeceu e saiu com as filhas, de 12 e 15 anos, Mário seguiu noutro carro, com os pais e uma tia. O que aconteceu a seguir foi o inferno em meia dúzia de metros. “A Suzana, a Joana e a Margarida morreram na estrada. A mesma onde andei também eu para a frente e para trás ao longo de uns 500 metros. Vi carros desfeitos, fiz marcha atrás, mas abalroaram-me. Vi uma pessoa a abandonar o carro com o cabelo a arder, a roupa a arder. O carro que nos tinha abalroado ficou em chamas. No carro onde estava, os retrovisores começaram a derreter. Quando conseguimos sair, já estavam os carros todos a arder. Os pneus explodiam. Acho que fomos os únicos quatro sobreviventes daquele monte de carros ardidos. Infelizmente... Devia tê-las fechado dentro de casa.”

Enquanto Mário recua até ao momento em que tomou a pior decisão da sua vida, o seu pai, braço enfaixado e cabeça coberta por um enorme adesivo, vai balbuciando. “Tinham uma vida linda, feliz.” Mário concorda. “Já só faltava construir uma piscina para termos aqui uma casa como queríamos, para as férias e os fins-de-semana. As minhas filhas adoravam vir para cá.” E agora? “Estou a pensar cremar — acabar de cremar — a minha mulher e as minhas filhas para ficar com os restos mortais. Aqui ou na Póvoa de Santa Iria, onde morávamos, estarão sempre perto de mim.”

Como um tornado

Está Mário a remoer os seus mortos, sozinho entre as oliveiras chamuscadas do seu quintal, e estão os outros todos a chorar o mesmo. A terra ainda queima. Sobe-se pela Rua do Quebra-Costas, onde há uma casa de xisto esventrada pelo fogo, e vai-se dar a um largo onde jaz uma carcaça de uma carrinha ardida. Há silêncio a agravar o manto negro que cobre quase tudo, casas que escaparam impunes e outras que ficaram completamente destruídas. Liliana Coelho, rabo-de-cavalo, top preto, ar de não ser daqui, assoma à porta da sua casa e explica. “Não foi um incêndio de propagação normal. Havia setas de lume e só depois é que veio o fogo. Por volta das 19h30, ficou de noite. Ouviu-se um barulho, tipo furação, e começou a rebentar tudo. Foi como um tornado que levava coisas a arder lá dentro.” Numa das casas parcialmente ardida está uma mesa posta para nove pessoas. Ontem à tarde, ainda ninguém sabia onde estariam. “Tivemos cá cinco mortos confirmados e estas nove pessoas desaparecidas que ainda ninguém sabe onde estão.”

A GNR já por cá passou a perguntar nomes e moradas. A contabilidade deste fogo continuará a fazer-se ao longo dos próximos dias. Por enquanto, o que se vê quando se percorre estes lugares são quilómetros de árvores carbonizadas. Terra preta, ainda a fumegar, ainda a queimar os pés, gado queimado em currais reduzidos a escombros. Vinhas com folhas que se desfazem em pó, quando apertadas entre as mãos.

No caminho que conduz a Nodeirinho, onde terão morrido 11 pessoas, Amadeu Gomes olha ensimesmado as duas carcaças automóveis que cortam a estrada. Num dos carros, que chegou a ser seu, seguiam o genro e um sobrinho deste, com quatro anos. Morreram, tal como o casal que seguia no outro carro. “Um deles ficou ali muitas horas. Um bocadinho de pessoa. Só se reconhecia o osso das costas. O meu genro vinha de cima, a fugir do fogo, o outro carro vinha de baixo, também a fugir do fogo; bateram ali.”

Nenhum escapou. O genro, Cid Belchior, e o seu sobrinho, Rodrigo, tinham ido vigiar o andamento do fogo para avaliar se partiam ou se ficavam. “Eles viviam em Lisboa, na freguesia de Santa Clara, mas tinham vindo passar uns dias. Os pais do menino tinham ido de lua-de-mel para S. Tomé e Príncipe e o menino preferiu ficar com o tio. Eram muito amigos. Para onde ia um ia o outro também. A minha filha tinha casado há três anos e estavam a fazer tudo para me dar um neto. E agora acontece isto...”, situa. Explica ainda que os pais do menino chegaram esta manhã, de emergência. “A minha filha salvou-se porque ficou em casa, mas está diminuída.”

Daqui a nada chega um reboque para levantar os carros e desimpedir a estrada. “Já é o quarto”, atira o condutor do reboque. “Vão aí 23 mil euros”, responde Amadeu Gomes, apontando o carro. A tarde mal começou. O PÚBLICO pergunta ao condutor do reboque se tem mais pedidos. “Ai, Jesus”, despacha, perante a redundância da curiosidade. Basta andar por estas estradas para perceber. Na casa de José Carlos, 46 anos, arderam o camião de transporte de madeira, o tractor, “as ferramentas todas do trabalho”, como conta o empresário que, há um ano, investiu o que tinha e o que não tinha numa empresa de exploração florestal. Estão sentados, empresário e filho, no degrau de acesso à casa. E a casa é uma construção cinzenta no meio de um manto negro. Os vidros das janelas partiram com o calor. “O que as salvou, à minha mulher e à minha filha, foi que tiveram cabeça para se enfiar na cave.” José Carlos, que saíra para recolher um tractor e que ficou ele próprio cercado pelas chamas durante várias horas, ainda aproveita para perguntar se sabemos se haverá ajudas financeiras a quem ficou sem nada. Depois, envergonha-se. “Bem, aquilo que eu mais temia que acontecesse não aconteceu. Outros estarão pior...”.

Vidas desfeitas

Na Travessa Hortas da Adega, no lugar de Mosteiro, António Rosa e Carminda Bernardes recolhem água de um regato com um balde sem se perceber muito bem para quê. O gado que tinham morreu. Uma mula, éguas, ovelhas. O tractor, o motor de rega, a debulhadora arderam. Onde havia tronchudas, feijões e espigas há cinzas fumegantes. Não há comida para os animais que escaparam nem para o casal que julgou não sobreviver para contar esta história. “Não acreditava que o mundo podia acabar em chamas mas agora vejo que pode acontecer”, diz António Rosa, 77 anos. “O fogo saltava que metia respeito e a gente nem água tinha para lhe pôr a mão em cima. Um fumo negro, negro, negro que a gente queria mexer-se e não era capaz. Estou toda queimadinha, mas nem senti o fogo a agarrar-se a mim”, recorda Carminda Bernardes. E arregaça mangas e calças para mostrar as pernas e os braços a pedirem olhar médico. A aflição maior do casal foi não saber da sua filha que, por não aguentar o fumo, tinha sido mandada para casa. “Fiquei maluca de todo. Até o frigorífico comecei a esvaziar para ver se ela não se teria metido lá dentro. E a gente não tinha a quem perguntar.” Foram horas a desafiar chamas e cortes de estrada até conseguirem localizá-la, em Avelar, no concelho de Ansião, para onde fora conduzida pelos bombeiros. “É que a gente nem telefone tinha para perguntar.” O marido, ensimesmado, procura olhar para a frente e não consegue. “Como é que vamos reerguer isto tudo? É uma vida inteira toda estragadinha...”

No lugar das Troviscas, na freguesia de Pedrógão, ainda não passaram bombeiros. Apenas umas carrinhas das misericórdias a oferecer água e bolachas e a procurar sinalizar pessoas que precisem de assistência hospitalar. “Está tudo bem”, despacha Margarida Crespo. Está com o marido, o filho e a sogra no largo a dar de beber aos cães. O marido, que passou a noite preso num barracão rodeado por chamas, escapou à força de apagar as chamas que ameaçavam os fardos de palha e as alfaias agrícolas com panos molhados. “Foi a noite toda nisso.” E chora. Com ele chora o filho também que julgara ficar sem pai. Abraçam-se todos, a sogra a ameaçar soçobrar. É Margarida que trata de os mandar procurar as ovelhas que não morreram. “É preciso dar-lhes água. A comida... não sei. Não há.” E, voltada para a equipa do PÚBLICO: “Se não aproveitarmos esta tragédia para juntar os terrenos e fazer um ordenamento, daqui a dez anos estaremos de novo a lutar contra o fogo. E aí não sei se escaparemos. Mesmo agora, se forem por aí fora...”

Por aqui fora houve gente a fazer-se às brasas de pés descalços. Sem telefones. Sem bombeiros. “O fogo andava aí e ninguém aparecia para ajudar. O velhote ali de cima apareceu aqui já com a roupa a arder. Os pés descalços, queimados.” Terá sido encaminhado, muitas horas depois, para o hospital em Coimbra. “Gritava ‘Acudam-me, acudam-me que me deixam aqui a morrer. Mas a gente não lhe conseguia deitar a mão”, desculpa-se Silvinda Antunes. Tem 87 anos, “um aparelho plantado na coluna que se fendeu”, mexia-se o suficiente apenas para tratar da horta. “Agora fiquei sem uma folhinha verde para botar na panela. É uma dor na alma.”

Na cabeça do alemão Gunnar Pfabe, fixado há oito anos em Troviscais, as fronteiras vão muito além de Pedrogão Grande. As preocupações, porém, não são menores. “Comprámos um terreno para vender, perto do rio, mas agora tudo isto perdeu valor. Tinha holandeses e ingleses interessados, mas agora a zona vai ficar com muito má reputação”, lamenta-se o promotor imobiliário. Anda num carro, de mala aberta para o cão poder respirar, a fazer o reconhecimento dos estragos. “As televisões na Alemanha e na Áustria estão a falar deste fogo. Agora, cada estrangeiro que ouça falar de Pedrogão Grande tem a imagem do fogo. Isto era um paraíso, quase a única região de Portugal onde se podia comprar um terreno a preços humanos. Agora... Tantos mortos. Porra...”, pragueja, deixando no chão a placa de madeira com o seu número de telemóvel sob a inscrição “Vende-se”.

Não se há-de vender tão cedo. Até porque as contas mais urgentes para fazer por estes lugares são ao número exacto de mortos e desaparecidos: 64 e 135, segundo o último balanço. Sem mulher nem filhas ao lado, Mário Pinhal não esconde que não se importava de estar neste rol. “Vi uma pessoa a abandonar o carro com a roupa a arder, o cabelo a arder. Por que é que eu me fui salvar?”

Nota do director: A entrada deste texto foi alterada, face às críticas que gerou entre muitos leitores. Como o texto da Natália conta extraordinariamente bem, a dor de Mário com a morte da sua família não é mensurável - e nunca lhe poderia ser atribuída uma responsabilidade pelo que aconteceu. Como o texto da Natália explica, Mário tentou salvar a mulher e filhas até ao último segundo das suas vidas. Por respeito a estas vítimas, por respeito à dor que todos sentem, não quisemos deixar qualquer dúvida sobre isto. As nossas desculpas a quem tenhamos ofendido.

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