Ondas de calor que matam ou ajudam a matar

Cientistas dos EUA e Reino Unido avisam que os casos de ondas de calor associados à mortalidade vão aumentar, pelo menos, 48% até 2100. Em Pedrógão Grande, o calor que secou a terra e a floresta terá funcionado como combustível do fogo.

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As ondas de calor potenciam o risco de incêndios Adriano Miranda

Independentemente do fósforo de uma trovoada seca que poderá ter iniciado a tragédia deste fim-de-semana em Pedrógão Grande, a terra quente e seca numa região colonizada por inflamáveis eucaliptos funcionou seguramente como combustível para o incêndio. Nos últimos dias, muitas regiões do país encontravam-se numa situação de onda de calor. O projecto Ícaro, que faz parte do Plano de Contingência para Temperaturas Extremas Adversas da Direcção-Geral da Saúde (DGS), registou um dos mais altos níveis de alerta no último sábado. Num estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature Climate Change, cientistas dos EUA e do Reino Unido avisam que, faça-se o que se fizer, as ondas de calor vão continuar a aumentar.

Segundo a Organização Meteorológica Mundial, uma onda de calor é caracterizada por uma temperatura cinco graus Celsius acima do valor médio diário no período de referência durante, pelo menos, seis dias consecutivos. Estas situações de temperaturas extremas podem ocorrer em qualquer altura do ano, mas, tal como refere o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), “Junho é o mês de Verão em que as ondas de calor ocorrem com maior frequência em Portugal Continental”.

“Não tenho grandes dúvidas de que estamos actualmente numa situação de onda de calor na Península Ibérica”, diz Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. E, admite, o calor e o vento empurrado pelas altas temperaturas também terão tido um papel na tragédia de Pedrógão Grande. “A partir dos 30 graus de temperatura do ar e se a humidade estiver na ordem dos 30%, temos uma situação que potencia o risco de incêndio. Termos uma estrada daquelas [EN236-1], com aquela floresta a envolver a estrada até à berma, é muito mau. Ficar naquele sítio, com aquela temperatura, durante alguns minutos é fatal.”

A 13 de Junho, o IPMA referia que seis estações meteorológicas no país (no distrito de Bragança e Guarda) já registavam temperaturas suficientemente altas há pelo menos sete dias consecutivos para serem classificadas como estando numa situação de onda de calor. Na mesma altura, o IPMA avisava que “muitos locais das restantes regiões do interior Norte e Centro e no Alentejo, de acordo com a previsão, deverão entrar em onda de calor no dia 15 de Junho”. Esta segunda-feira, o IPMA concluía que “os efeitos dramáticos observados [em Pedrógão Grande] foram muito potenciados pela conjugação desfavorável de descargas eléctricas na ausência de chuva, temperatura muito elevada, baixa humidade, ventos locais induzidos pela instabilidade e pelo incêndio, e reduzida água no solo”. A temperatura na região no dia 17 era de 33,3 graus Celsius e a humidade de 20%, especificava-se.

De facto, segundo o registo feito pelo Sistema de Monitorização e Vigilância Ícaro, que é coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), os primeiros sinais de alerta para o calor surgiram já nos dias 12, 13 e 14 de Junho. A partir daí, a linha do nível de alerta subiu. Carlos Dias, coordenador do Departamento de Epidemiologia do Insa, explicou ao PÚBLICO que – segundo os cálculos feitos com base na previsão de temperaturas e no historial de temperaturas e mortalidade – o dia 17 de Junho (sábado) mereceu um nível de risco de 7,3, sendo que o mais alto valor registado até hoje terá sido o nível 9. Esta segunda-feira, o índice de risco já tinha baixado para os 5,5 (ainda assim num nível elevado).

Esta avaliação de risco não está disponível ao público e é apenas comunicada à autoridades de saúde, desde a DGS, a centros de saúde e hospitais. “Foi feito um alerta de onda de calor onde referíamos que eram esperadas consequências graves em termos de saúde e mortalidade”, confirma Carlos Dias.

As ondas de calor são cada vez mais frequentes, sobretudo desde a década de 90. No calendário deste fenómeno, sobressai a data histórica de 2003, quando entre Julho e Agosto uma onda de calor que atingiu vários países da Europa ficou, em Portugal, associada a quase duas mil mortes acima do esperado. Mas houve mais. Pela intensidade, duração e extensão espacial, o IPMA destaca ainda as ondas de calor de Junho de 1981, Julho de 1991 e entre Maio e Junho de 2005. “Olhando para os registos que temos dos últimos anos, confirma-se que a frequência é cada vez maior”, diz Carlos Dias.

Risco global para calor mortal, avisam os cientistas

Uma equipa de cientistas dos EUA e do Reino Unido também confirma o aumento de frequência das ondas de calor e o risco de um aumento de mortalidade que está associado a estas temperaturas extremas. O estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature Climate Change refere que, nos cenários sobre ondas de calor, a escolha está actualmente reduzida a um futuro mau ou terrível.

Cerca de 30% da população mundial está actualmente exposta durante (pelo menos) 20 dias por ano a ondas de calor que podem matar, concluem os investigadores. Mais: na melhor das hipóteses, em 2100, esta percentagem vai aumentar 48%. Se as emissões de gases com efeito de estufa continuaram a subir nos actuais níveis, o aumento será na ordem dos 74%. No artigo, os cientistas adiantam que os seus cálculos permitiram a definição de um limite a partir do qual a temperatura do ar e a humidade se torna fatal, o que os levou às preocupantes projecções que fazem para o futuro.

O artigo científico com o título “Risco global de calor mortal” é o resultado da análise de 30 mil publicações sobre ondas de calor, que acabou por encontrar 911 estudos com dados sobre cidades e regiões onde as altas temperaturas foram associadas a mortes. Nesta revisão, foram identificados mais de 1949 locais no mundo onde as ondas de calor mataram pessoas desde 1980. E avisam: com o previsível aumento das ondas de calor associadas às alterações climáticas, a situação não vai melhorar. Aliás, segundo os especialistas, o risco vai aumentar mesmo que se consiga os melhores resultados possíveis na redução de emissões de gases com efeito de estufa. Ou seja, a questão já não é se vai piorar ou não, mas quanto é que vamos permitir que piore.

“A nossa atitude com o ambiente tem sido tão imprudente que estamos a ficar sem boas escolhas para fazer no futuro. Para as ondas de calor, as nossas opções são agora entre o mau e o terrível”, diz o principal autor do artigo, Camilo Mora, da Universidade do Havai em Manoa, num comunicado da instituição. A explicação é simples: o corpo humano tem limites e só consegue funcionar razoavelmente bem com temperaturas que não ultrapassem muito (e durante muito tempo) os 37 graus Celsius.

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