Na vizinhança, Pedrógão está em todas as conversas. Mas “o sentimento é de impotência”

A festa dos 500 anos da freguesia de Maceira manteve-se, mas a solidariedade marcou o dia. O tema à mesa foi o incêndio que matou pelos menos 62 pessoas e houve quem se fizesse sozinho à estrada.

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Paulo Pimenta

Cerca de 90 quilómetros separam o centro da freguesia da Maceira, em Leiria, do local do incêndio em Pedrógão Grande, mas ainda assim, este domingo, a população acordou com o cheiro dos incêndios e com os pátios cobertos de fagulhas. No céu, uma nuvem espessa de fumo esconde o dia. O ar quente dificulta a respiração, mas nada que se compare com o pesadelo que se vive em Pedrogão Grande, comenta a população. No fim-de-semana em que a freguesia celebra 500 anos de história, o clima que deveria ser de festa é marcado pela tragédia, vivida de perto pelos familiares e bombeiros da freguesia que combatem as chamas a uns quilómetros de distância.

As primeiras notícias começaram a chegar ainda no sábado, dia em que a cerimónia de entrega de prémios do torneio de futsal foi marcada por uma salva de palmas e palavras aos Bombeiros Voluntários da Maceira, alguns dos quais que não puderam assistir ao momento da distinção por estarem já no terreno a prestar apoio às populações. Ouve-se uma forte salva de palmas.

O primeiro balanço, que apontava para 19 mortos, causava já choque e era tema entre os vizinhos. “Todos os anos é a mesma coisa”, ouve-se de um lado. “Chega este calor e já se sabe o que é”, comenta uma outra vizinha, enquanto se encolhem ombros. “Estão para lá os bombeiros”, acrescenta um terceiro. O passar das horas que não viram descer a temperatura e o agravamento da situação com o aumento do número de mortos e de feridos tornou o pesadelo um assunto incontornável.

Chega a manhã de domingo e a tragédia marca a festa da aldeia. Todas as tasquinhas que servem os comes e bebes tradicionais têm uma mensagem de apelo à solidariedade da população: “Na sequência dos vários acontecimentos trágicos nestas últimas horas, em especial em Castanheira de Pêra e Pedrógão Grande, solicitamos a generosidade dos maceirenses e visitantes para ajudar com alimentos/bebidas e outros, principalmente água, leite e bolachas. Esta ajuda deve ser entregue no quartel dos Bombeiros Voluntários de Maceira”.

Uma das ajudas chega de Luís Dinis. “Ontem [sábado] à noite, quando ouvi que eram 19 mortos fiquei logo surpreendido com um número tão elevado, num só dia. Acordei e já tinham passado os 40 mortos. Não é fácil de digerir. Nas redes sociais estavam todos a partilhar imagens da tragédia e foi quando vi um apelo da junta de freguesia. Peguei no carro e fui às compras”, conta ao PÚBLICO. A decisão “instintiva e natural”, como a descreve, resultou em 60 garrafas de água, seis pacotes de leite, bolachas e barras de cereais.

“Vivemos aqui numa zona perto do pinhal. Chega-se a esta altura e é um pandemónio. Todos os anos é este calor e céu escuro com o fumo. O que assusta mais é que não param de cair fagulhas, alguma delas apagadas, mas as pessoas dormem com medo. Eu durmo com medo. Tenho sempre receio que chegue aqui”, desabafa.

Na zona onde mora, “são quilómetros e quilómetros de mato sujo, com material seco e pronto para arder. Se o fogo pega lá, já não há tempo para tirar nada. Uma pessoa já tem pouco e o que tem vai à vida. É fodido”, comenta com revolta. “Está tudo a arder e o que vais fazer? Em primeiro lugar queres salvar a tua família. É fugir e tentar levar documentação e pronto. Esperar que te consigas salvar e que não fiques sem nada”, diz Luís, justificando o gesto solidário. Ao longo do dia viu que mais pessoas faziam o mesmo e partilhavam o gesto nas redes sociais, apelando à adesão da freguesia. “Conheço bem a zona que ardeu. É impossível não nos colocarmos na pele daquelas pessoas.”

Uns quilómetros ao lado, na Marinha Grande, um hipermercado tinha as prateleiras da água e do leite vazias, conta José Luís Ascenso, um maceirense no recinto da festa da aldeia vizinha. “Fui lá esta manhã e vimos as prateleiras vazias. As pessoas estão a comprar para levar às corporações de bombeiros da região.” No recinto da festa da Maceira, “há pessoas a trabalhar aqui que só queriam era estar lá”, garante José Luís. “Vão ajudando como podem através de mantimentos”, acrescenta a mulher, Ana, que assiste à conversa ao lado. A actuação da Fanfarra dos Bombeiros da Maceira, agendada para as 14h30, foi cancelada, em solidariedade com os colegas e com vítimas, observa Mariana, de 15 anos, que por ali passa e ouve a conversa. A tragédia e choque atinge todas as idades. “Isto veio marcar a festa. Há um clima pesado. Não há como não falar disso hoje”, acrescenta Ana Ascenso, com uma voz emocionada.

“É uma notícia que nos deixa os olhos húmidos”

Bombeiro durante 18 anos, Horácio Sousa é um dos testemunhos mais emocionados. Chega até nós com um avental de cozinha, das traseiras da tasquinha da Sociedade Filarmónica da Maceira, onde está este fim-de-semana a ajudar a organização. “O sentimento é de impotência. Já estive a falar com os meus colegas e percebi que estão organizados. Agora já não há muito a fazer. As condições para haver fogo estão criadas. É uma questão política”, assinala enquanto limpa as mãos ao avental.

“E depois o índice populacional é muito baixo naquela zona. Não há gente para fazer de bombeiros”, retoma o antigo bombeiro, enquanto se move passo à frente e outro atrás, a um ritmo nervoso.  Da sua experiência no terreno, recorda o pânico vivido nestas situações. “As pessoas entram em pânico e respiram mais depressa. Ao correrem, a fugir, respiram também muito mais rapidamente e respiram mais fumo e acabam por cair mais depressa. Ficam intoxicadas mais depressa”, explica Horário, antes de se sentar e descansar do calor da cozinha.

“Agora resta-nos ajudar com o que conseguirmos”, interrompe José Luís Ascenso. E a onda de ajuda é enorme, não só na Maceira, como nas outras freguesias leirienses. Em duas horas, a solidariedade da população foi tal que em Parceiros, um par de quilómetros ao lado, as carrinhas do centro recreativo não foram suficientes para transportar os enlatados, a água, o leite, os cobertores, os artigos de higiene e até as colchonetes que se recolheram entre a população para ajudar as vítimas do concelho. Só este domingo juntaram-se cinco carrinhas, todas elas cheias de mantimentos.

Foi no meio deste impasse de caixas por carregar que Telmo Oliveira, da freguesia de Parceiros, decidiu pegar na carrinha do pai e com ele conduzir até Pedrógão Grande para entregar os produtos recolhidos pela população no centro de recolha improvisado, juntando-se assim ao grupo do centro recreativo da freguesia de Parceiros. Uma viagem de 40 minutos para cada lado. “Assim que chegamos, ainda a quilómetros do local do incêndio, não vemos céu nenhum. Não há nuvens cinzentas. O céu é completamente negro”, começa Telmo Oliveira.

“Os bombeiros não têm mão a medir na área que é. As pessoas queixam-se de que eles não chegam a determinadas zonas, mas a verdade é que nem têm como”, nota, impressionado. “Quando se acha que está tudo controlado surge uma frente que coloca todos para trás e para a frente novamente. É indescritível o que se vive ali. Falei com dois irmãos que tinham perdido os pais no incêndio. A dor que se sente ali não tem medida”, continua. Nos próximos dias a recolha continuará, mas será entregue nos bombeiros da Maceira.

Videovigilância florestal em standby

De volta ao recinto, já ao final da tarde, o presidente da Câmara Municipal de Leiria, Raul Castro, presença assídua na festa da vila da Maceira, atravessa o recinto a ritmo apressado. Esteve presente na cerimónia que assinala o aniversário da vila, mas daqui segue para o Pedrógão para reunir com os membros da comissão distrital da Protecção Civil de Leira. Acompanhamos o seu caminho até ao carro, enquanto cumprimenta alguns dos habitantes. “Hoje tenho de ir embora”, justifica a um. “Espero que isto, que é perfeitamente indescritível, não se venha a repetir”, começa. As condições naturais não ajudaram o trabalho dos bombeiros. “Alargou-se de uma maneira muito rápida e com aquele número que gostaríamos que ficasse por ali, mas ainda estamos na expectativa do que vai ser descoberto.” O autarca assinalou a onda de solidariedade e atira a esperança para que a situação não se repita “em termos do comportamento da Natureza em si”. “Já chegam os erros humanos que podem ocorrer”, explica, sem deixar de ressalvar que “não foi este o caso”.

“Está a ser feito um procedimento – que já vem de há uns meses e não é só desta circunstância – de cobertura de toda a zona florestal do interior da comunidade intermunicipal, que inclui os concelhos onde agora sucedeu o incêndio, para que exista videovigilância”, antecipa. “Isso pode ser uma boa ajuda.” O que falta para que entre em funcionamento? “Não é sequer uma questão financeira, está já em curso e temos a capacidade de concretizar este investimento. Depende só da burocracia.” 

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