Ponte da Barca evoca Laureano Barros, o matemático que coleccionava livros

A estreia do documentário , de Paulo Pinto, é um dos momentos do programa que a vila minhota dedica este sábado ao matemático que ali reuniu uma das mais notáveis bibliotecas privadas portuguesas.

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O grande bibliófilo, matemático e intelectual anti-fascista Laureano Barros (1921-2008), que reuniu na sua quinta da Fonte da Cova uma das mais extraordinárias bibliotecas privadas portuguesas da segunda metade do século XX, é homenageado este sábado em Ponte da Barca, onde passou as últimas décadas da sua vida, com um programa que inclui a estreia do documentário Laureano Barros, Rigoroso Refúgio, realizado por Paulo Pinto, e o lançamento do livro O Grilo na Varanda, que reúne a correspondência de Luiz Pacheco para o coleccionador, um volume organizado e prefaciado por João Pedro George, biógrafo do autor de Comunidade, e editado pela Tinta da China.

Livro e filme serão apresentados a partir das 16h30 na Casa de Santo António do Buraquinho, em Ponte da Barca, numa sessão em que, além dos respectivos autores, participará Paulo Pacheco, filho de Luiz Pacheco.

Antes disso, num programa que é também um tributo à paixão de coleccionar, José Pacheco Pereira apresentará no mesmo local a colecção de livros Ephemera, através da qual têm vindo a ser estudados e divulgados alguns núcleos específicos do gigantesco arquivo e biblioteca que reuniu na sua propriedade da Marmeleira, em Rio Maior.

Ao fim da tarde, a Casa de Santo António do Buraquinho acolherá ainda uma conversa com três coleccionadores de livros – António Maria Pinheiro Torres, Carlos Almeida e Jorge Meireles –, e esta evocação de Laureano Barros, intitulada Biblioteca Vertical numa alusão à reconhecida verticalidade de carácter do homenageado, encerrará à noite com um concerto do fadista Ricardo Ribeiro no Largo da Misericórdia.

Quem frequentou os velhos alfarrabistas do Porto, alguns ainda em actividade, sabe que se referiam sempre a Laureano Barros com um respeito muito próximo da veneração. E não apenas por ser um proveitoso cliente, mas porque lhe reconheciam um vastíssimo saber na sua própria área de especialidade, consultando-o a pretexto de dúvidas bibliográficas, ou pedindo-lhe até que lhes recomendasse o preço adequado a pagar por qualquer raridade que lhes era proposta. E admiravam-lhe também essa intransigente rectidão moral que, logo aos 26 anos, em 1947, o lançou no desemprego. Assistente de Ruy Luís Gomes, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, protestou contra a prisão de uma aluna pela PIDE, o que bastou para ser impedido de leccionar no ensino público. Viveu os 20 anos seguintes a dar explicações, com alguma contribuição paterna a arredondar os proventos, já então maioritariamente investidos na aquisição de livros.

A sua biblioteca, leiloada após a sua morte pela Livraria Manuel Ferreira, era tão extensa e tão valiosa que foi preciso organizar um leilão em três partes, com meses de intervalo entre elas. Laureano Barros era um coleccionador exaustivo de Pessoa ou Sá-Carneiro, mas também, por exemplo, de Eugénio de Andrade, Luiz Pacheco ou Herberto Helder. E este seu particular interesse pela literatura portuguesa do século XX convivia com outras predilecções, entre as quais se contava a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, da qual conseguiu reunir todas as dez primeiras edições.

É claro que é preciso algum dinheiro para construir uma biblioteca deste nível, e Laureano Barros tinha até reputação de manter alguns hábitos não apenas dispendiosos, mas um pouco excêntricos, como o de levar regularmente os trabalhadores da quinta a almoçar ao reputado restaurante do Hotel do Elevador, no Bom Jesus de Braga. Mas o coleccionador também teve períodos difíceis. Num dos mais interessantes testemunhos recolhidos por Paulo Pinto no seu filme, o histórico livreiro da Académica, Nuno Canavez, então ainda empregado do fundador da casa, Joaquim Guedes da Silva, recorda que Laureano Barros recorreu a dada altura ao seu patrão para vender a biblioteca que por essa altura já reunira. O livreiro ainda tentou, em vão, emprestar-lhe dinheiro, mas acabou mesmo por lhe comprar a colecção. Ou seja, a biblioteca que veio a ser leiloada era já a segunda.

O matemático bibliófilo foi também amigo e correspondente de vários escritores, incluindo Luiz Pacheco ou Eugénio de Andrade, que passava temporadas regulares na quinta da Fonte da Cova. Em Laureano Barros, Rigoroso Refúgio vê-se o exemplar que o poeta ofereceu ao amigo do seu raríssimo (e rejeitadíssimo) livro de estreia, Narciso (1940). No final do volume, Eugénio escreve: “Reli isto, Laureano. Que horror! Para que diabo quer você esta porcaria?”. Quando a biblioteca foi leiloada, este mesmo exemplar foi arrematado por quatro mil euros.

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