A simulação do futuro

A Sociedade dos Sonhadores Involuntários: o futuro simulado, em Agualusa, só pode ser o do fim do regime de José Eduardo dos Santos.

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miguel manso

Há gente que sonha, gente que não sonha, gente que aparece nos sonhos dos outros, gente que encena os próprios sonhos, gente que inventa máquinas de filmar sonhos, gente que sonha o futuro. José Eduardo Agualusa adentra-se pelo mundo onírico para falar da realidade de Angola e poder assim “simular um futuro”, na definição de sonho do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro. Um futuro simulado que em Agualusa só pode ser o do fim do regime de José Eduardo dos Santos.

A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é um livro político, uma ficção cheia de marcas da guerra (mais na memória, mas também no corpo), da dura realidade quotidiana angolana e que, tal como na maioria dos livros de Agualusa, cruza o Atlântico entre Angola e o Brasil, acrescentando-se, também, neste caso, África do Sul e Cuba.

Ao mesmo tempo, é uma homenagem aos jovens do movimento revolucionário angolano, aos revus, a Luaty Beirão e aos outros 16 presos políticos que penaram nas cadeias pelo delito de ler um livro – e de buscar uma mudança e de querer um país diferente, com outro presidente que não aquele que exerce o poder há 38 anos.

A história escolhe o ponto de vista do jornalista Daniel Benchimol, um desses que com o seu silêncio vai ajudando o regime a manter-se no poder, pai de Karanguiri, a líder dos jovens revus que colocam em causa o regime com a sua capacidade para enfrentar o medo – “são malucos, não mostram medo, e isso é uma doença contagiosa”, exclama o Presidente a Hossi Apolonio Kaley (o torturador que morreu duas vezes) durante um sonho.

Aparecem antigos torturadores que são outros porque - voluntária ou involuntariamente - esqueceram quem foram, gente que desviou um Boeing 727, amores cubanos e moçambicanos e o neurocirurgião Hélio de Castro que traz ao livro os estudos científicos levados a cabo por Sidarta Ribeiro no Instituto do Cérebro, em Natal.

Com tamanho povoamento de sonhos acaba por sentir-se algum asfixiar da realidade. O risco de tratar ficcionalmente uma situação real aumenta quanto menor é o tempo que passou – o que tratar? O que escolher? O que é importante? O que é acessório? O que fica e o que acabará por se esquecer?

Uma reportagem jornalística vive habitualmente do momento, a ficção do eterno – ou pelo menos do que vale a pena resgatar para a posteridade. E para um escritor que define a criação literária como a capacidade de se colocar na pele do outro, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” acaba por não se colocar na pele dos revus, a quem o livro está dedicado.

Somos sempre observadores não participantes, recebendo notícias em segunda mão sobre a sua coragem, sobre a actividade que irá pôr em causa o regime, sobre a sua detenção, a greve de fome, sobre tudo aquilo que poderíamos ler nos jornais. Dos heróis deste livro sabemos do seu heroísmo, menos da sua humanidade. Representam papéis, elevam-se de entre os outros sem chegar a ser de carne e osso.

Não ajuda o ponto de vista escolhido para narrar a história, o de Daniel Benchimol, alguém que, como lhe diz um amigo, pertence a esses que “estão aqui em Luanda, mas não vivem aqui connosco. Não sofrem connosco”. Um ponto de vista por sua vez necessário para que o sonho se simule em futuro, quando os do “silêncio cúmplice”, como Benchimol, finalmente se apercebem do imperativo de gritar.

O décimo quarto romance do escritor angolano, nascido no Huambo em 1960, é um livro engajado, para usar uma palavra muito cara em Angola, sem perder a ambição de ser poético e a vontade de saber mais sobre o mundo dos sonhos. É um livro de quem continua a acreditar em utopias, de quem vê Angola como “a feroz alegria que sobrevive entre ruínas”. 

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