O Qatar e os bastidores da fragilidade árabe

A confrontação entre a poderosa Arábia Saudita e o pequeno Qatar é algo menos óbvio do que se pretende sugerir.

O mundo árabe adora apregoar a sua unidade. A verdade é bem distinta desta perspetiva quase idílica. Mesmo que em muitos casos exibam uma impressionante modernidade decorrente de o seu solo ser rico em petróleo e gás, a generalidade dos países árabes assenta em sociedades que até um passado não muito distante eram fortemente tribalizadas e rivais entre si. Nesses países tropeça-se constantemente em indícios que revelam desconfianças recíprocas ou mesmo frequentes ódios.

O Qatar é um emirato com um oitavo da área de Portugal, situado no Golfo Pérsico, e, como os seus vizinhos, é rico em petróleo e gás natural. A modernidade da sua capital, Doha, é assombrosa. O seu PIB per capita é quádruplo do de Portugal. Tal como outros países na região, o seu aceleradíssimo crescimento económico atrai uma larga comunidade de imigrantes, que representam 88% da população residente.

O emir Tamim é um jovem com uma forte personalidade, que assumiu o poder no Qatar quando, em 2013, o seu pai abdicou em seu favor. Essa abdicação causou tremores noutras monarquias do Golfo em que tradicionalmente os monarcas conservam ferreamente o poder mesmo quando já não dispõem de capacidades para o gerir. Tamim cometeu a irracionalidade de, em 25 de Maio, elogiar num discurso o Irão, o Hamas e a Irmandade Muçulmana, com a qual parece simpatizar. Dias depois o Qatar pagou um avultado resgate a uma organização ligada ao Irão e a outra ligada à Al-Qaeda, para libertar membros da sua família real sequestrados no Iraque.

O conjunto destes dois factos foi imediatamente aproveitado pela Arábia Saudita, alguns emiratos vizinhos e países menos próximos mas nos quais os sauditas exercem uma grande influência, para a imposição de um bloqueio ao Qatar e para a suspensão das relações com ele mantidas. Na verdade, a irritação saudita tem algum fundamento. Contudo, a realidade total é menos óbvia, mais profunda e muito menos transparente do que aparenta.

O Qatar, um pequeno país com um comportamento altivo, tem dificuldade em vergar-se perante a Arábia Saudita, um país cujas prioridades estratégicas centrais incluem o poder hegemónico na região e o combate ao odiado Irão. Esses são os maiores problemas escondidos por detrás desta crise. De facto, o pequeno Qatar age com rebeldia perante a pressão da Arábia Saudita, o que irrita os dirigentes desta. O que estamos a vislumbrar é um ajuste de contas com um pretexto aparentemente real mas claramente hipervalorizado. E é um aviso de hegemonia e de poder para todos na região.

Ao longo dos anos, o Qatar exibiu alguma simpatia por forças fundamentalistas que a Arábia Saudita, bem como os Emiratos Árabes Unidos, tentam afastar. O receio saudita desta postura do Qatar poderia ser consensualmente compreendido, se não fosse também verdade que a própria Arábia Saudita tem assistido, no seu interior, ao incentivo do conservadorismo fundamentalista e ao financiamento de grupos extremistas que, porque atingiram níveis fortemente radicais, começaram a assustar o próprio regime, em larga medida por inabilidade deste.

Após o “Estado Islâmico” (ISIS) ter passado dez anos a ameaçar praticar atentados no Irão, não é coincidência que tenha, há dias, realizado dois atentados nesse país, em dois alvos escolhidos com perspicácia — o centro do poder temporal no Irão (o Parlamento) e o seu epicentro espiritual (o mausoléu do ayatollah Khomeini). Há dez anos, o ISIS só foi contido nesta sua ameaça pela pressão de bin Laden, líder da Al-Qaeda, o qual, apesar de detestar o Irão, tinha planos menos agressivos perante este país e detinha lá vários dos seus familiares próximos. Acrescia que o Irão tinha importância para a Al-Qaeda no acesso ao Afeganistão e ao Iraque.

Mas agora o ISIS é obcecado em se demarcar da Al-Qaeda para lhe usurpar o seu espaço vital na região e no mundo, algo fundamental agora que o “Estado Islâmico” perde o seu território físico. Simultaneamente, o ISIS pretende provocar o Irão para o induzir a apoiar mais claramente os xiitas da Síria, para que estes, reforçados aí no ataque aos sunitas, forcem estes a aliarem-se ao ISIS. Este apoio massivo dos sunitas na Síria poderia assegurar um razoável grau de regeneração da força desse grupo radical.

E quem tem interesse neste maquiavelismo? A confrontação entre a poderosa Arábia Saudita e o pequeno Qatar é algo menos óbvio do que se pretende sugerir. Donald Trump, ao ter recentemente apoiado alas sauditas mais conservadoras, poderá, na sua proverbial inconsciência, ter ajudado a aprofundar clivagens regionais perigosas para todos. O facto de determinados interesses na região estarem discretamente a apoiar a ideia de um golpe de estado no Qatar também não ajuda uma desejável pacificação.

É igualmente oportuno sublinhar que até recentemente, a maioria dos países árabes foi uma fonte de apoio aos extremistas na Síria. Por outro lado, a confrontação entre a Arábia Saudita e o Irão possui inúmeras faces, algumas das quais invisíveis. A intervenção saudita no Iémen destinou-se a conter o Irão (o que Oman recusou, enquanto o Kuwait tentou mediar um desanuviamento entre os países do Conselho de Cooperação do Golfo e o Irão). O Qatar discordou dessa estratégia saudita.

Agora, o bloqueio ao Qatar certamente terá, para este, um custo elevado, designadamente para a Qatar Airways que, de repente, ficou privada de voar para 19 destinos. Mas esse impacto geral não é catastrófico. O abastecimento de produtos ao Qatar fica afetado. Quase metade dos produtos alimentares consumidos diariamente no Qatar chega da Arábia Saudita. As restantes importações apresentam uma menor dependência dos sauditas. Mas se o bloqueio ao Qatar provocar neste um impacto demasiado doloroso, o que provavelmente sucederá é que este receberá um vigoroso apoio — do Irão. Isto é, se este bloqueio ao Qatar produzir um sólido efeito, o resultado último poderá ser contraproducente e bem mais grave para os interesses sauditas. Este bloqueio é uma ideia saudita pouco sensata.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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