Modo de sobrevivência

O que os Rua estão a fazer é tentar que aquilo que nos distingue sobreviva e se renove a partir de um novo quadro organizativo — o que tem intensas repercussões culturais.

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O Camping de Abrantes, no Rossio ao Sul do Tejo Miguel Manso

Ao longo da década passada, começaram a surgir em Portugal “colectivos” que reflectiam cansaço face à figura do “arquitecto-estrela” mas também pragmatismo face à complexidade de projectar e construir. Com excepções, não é por cá muito forte a tradição de “colectivos”. A componente artística impôs-se sempre ao modelo empresarial, o que significa o autor a impor-se ao gestor. A arquitectura em Portugal foi-se por isso fazendo de nomes com apelido.

O que o Atelier Rua está perto de alcançar é diferente: manter uma perspectiva autoral reflectida numa assinatura colectiva. É um caminho estreito. “Colectivo” não pode significar uma resposta corporativa, de mera gestão empresarial — porque isso mata a arquitectura. Seria interessante um estudo que elaborasse as diferenças de associação entre arquitectos portugueses e espanhóis, por exemplo. A resposta intuitiva é que nós somos mais individualistas. Com razão, tememos que o consenso debilite a arte; mas podemos acabar na rua. 

Poder-se-á estranhar que do lado da crítica de arquitectura se esteja a comentar formas de associação e organização. Mas é uma discussão central. O que os Rua estão a fazer é tentar que aquilo que nos distingue sobreviva e se renove a partir de um novo quadro organizativo — o que tem intensas repercussões culturais.

Os anos recentes mostraram-nos como a “gestão” pode parar o país. Muitos “colectivos” da década passada desapareceram ou estão em parte incerta. Seria interessante saber onde.

Os Rua são sobreviventes e um exemplo a seguir. Têm uma biografia curiosamente simétrica: todos nasceram em 1978 e todos se formaram na Universidade Lusíada. Este é outro dos sinais “sociológicos” importantes: não são formados nas escolas públicas de onde tradicionalmente saíam os arquitectos mais notórios. Mas tiraram partido dessa notoriedade estagiando em atelieres internacionais.

No portfolio do Atelier Rua encontramos trabalho muito diversificado que vai da escala do urbanismo até ao design, segundo uma tradição de “não-especialização”, que tem os seus críticos acérrimos. Vê-se também que estão à procura de uma escrita: nesta fase o que interessa é fazer o texto — que se adapta ao ecrã, à dimensão, ao editor. Esta maleabilidade fazia parte do kit de sobrevivência, é claro. Depois do texto, pode a escrita surgir? O Camping de Abrantes seduz pela visualidade-táctil; a Pensão Agrícola pelo arcaísmo; a intervenção nos escritórios na Gare Marítima de Alcantara pelo “conceito”; a Adega no Rodão esboça o gesto iconográfico.

Os Rua tentam correr dentro do sistema, entram em concursos, não fazem “auto-propostas”. Não têm tiques de revolta geracional; sabem pela experiência lá fora o que vale ser um arquitecto português. E como os U2 ou os Coldplay sabem que as canções serem assinadas por todos os membros do grupo é a única forma de garantir a longevidade do “colectivo”.

O que acontece a seguir a sobreviver? Os Rua estão obrigados a mostrar-nos como é que a arquitectura em Portugal se pode renovar e continuar a espantar. É esse o espírito que se respira no atelier do grupo em Alcântara, com a porta aberta para a rua, a sala com a mesa grande no piso de cima, e um muito útil apoio de cozinha.

Esperemos que os clientes atraídos pelas fotografias no Pinterest — trabalho, portanto legítimo — não matem a possibilidade de uma arquitectura que em Portugal se fez sempre com algo de adversarial. em relação a tudo. O desafio, em todas as ruas, é não deixar que uma arquitectura para o turismo se transforme numa arquitectura turística.

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