Era Angola, um fotolivro para uma guerra pouco documentada

O fotojornalista Jean-Charles Gutner passou dois anos na frente de guerra em Angola, entre 1993 e 1995. O livro em que compilou esse trabalho procura agora distribuição em Portugal.

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JEAN CHARLES GUTNER
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O fotojornalista cobriu o conflito primeiro como enviado da L'Express e depois para as agências France-Presse e Associated Press DR

O fotojornalista francês Jean-Charles Gutner tinha apenas 22 anos quando aterrou pela primeira vez em Luanda, em Março de 1993. Cinco meses antes, a 29 de Setembro, as primeiras eleições democráticas de Angola – presidenciais e legislativas – tinham dado dupla vitória ao MPLA, liderado por José Eduardo dos Santos; o resultado foi contestado pelo partido da oposição, a UNITA, que alegou fraude eleitoral, e a disputa pelo poder que se sucedeu mergulhou o país numa nova guerra civil que só viria a terminar em Fevereiro de 2002.

Enviado inicialmente pelo jornal francês L’Express, e mais tarde pela Agence France-Presse (AFP) e pela Associated Press (AP), Gutner cobriu o conflito armado angolano entre 1993 e 1995. As suas fotografias foram publicadas em jornais de todo o mundo e estão agora compiladas no fotolivro Era Angola, que procura distribuição em Portugal.

“Quando cheguei, em Março, o confronto já não estava nas cidades de Luanda ou Benguela. A UNITA já tinha recuado para as zonas rurais”, conta ao PÚBLICO. Na capital, a situação era de paz, apesar da frágil conjuntura económica e da severa crise alimentar. As frentes de combate eram acessíveis apenas via helicóptero e as acreditações emitidas pela inteligência militar, obrigatórias, eram difíceis de obter, motivo pelo qual Gutner demorou três meses a sair de Luanda. “Durante esse período de espera, fiz imagens com a Organização das Nações Unidas, com a UNICEF e o Banco Alimentar Mundial”, explica. “Havia uma cultura de desconfiança relativamente aos jornalistas estrangeiros. Houve sempre, da parte do Governo e da UNITA, vontade de vedar o acesso à imprensa – queriam ter controlo absoluto sobre a imagem e a informação que passava para o exterior. Não havia garantia [para o fotógrafo] de trazer boas imagens do confronto e da realidade do terreno, e essa dúvida representava um grande risco financeiro para as redacções [dos jornais], que optavam quase sempre por não enviar repórteres. Afinal, era apenas mais uma guerra em África!”. “Nada de novo”, ironiza. “Foi, por isso, uma guerra pouco documentada.”

Todos humanos

Granjeada a licença de deslocação para a frente de combate, o fotógrafo voou para a província de Benguela, mais concretamente para a frente central, situada entre Caimbambo e Cubal. Uma vez transferido, o fotojornalista não sabia quanto tempo teria de ali permanecer. “Podia passar semanas a tentar regressar a Luanda. Era deixado de helicóptero e não sabia quando haveria outro disponível para me vir buscar.” No início custou-lhe conviver com a ideia, confessa, mas acabou por tornar-se um hábito. Sentia, acima de tudo, falta da cidade, do ambiente urbano – de estradas alcatroadas, de electricidade, de uma casa de banho que merecesse esse rótulo. “Depois de viver na mata durante semanas, regressar à cidade é muito estranho. A guerra é surrealista por isso. É como se fosse um universo paralelo.”

Na “mata”, a realidade era bem diferente da que se vivia em Luanda, fria e hierarquizada. “Na frente, somos todos humanos. Não há estrangeiros ou soldados. A pessoa que está ao teu lado sente o mesmo medo de morrer que tu sentes. Estar numa situação de risco gera fraternidade entre as pessoas; as barreiras apagam-se e a confiança estabelece-se.”

Jean-Charles Gutner fez questão de acompanhar isoladamente as forças do MPLA e da UNITA. Afirma nunca ter assistido a situações de abuso de autoridade por parte dos militares do MPLA contra a população local. “A mensagem que o Governo dirigia às tropas, em 1993, era a da necessidade de libertação de um povo oprimido pela guerrilha. Os soldados [do MPLA] sentiam-se os libertadores das populações sob opressão da UNITA.” Assistiu, pelo contrário, “à vontade da UNITA de eliminar simpatizantes do Governo”: “Quando a UNITA ocupou Benguela, sempre que tomava um novo município capturava os simpatizantes do MPLA e fuzilava-os ou torturava-os. Eu testemunhei duas situações, no Soyo [no extremo Noroeste do país], em que as pessoas foram amarradas e colocadas em tanques de água, onde morriam afogadas. Outras eram, depois, penduradas pelos pés no tecto do contentor e morriam com a visão dos cadáveres afogados no chão. A guerra é uma experiência muito violenta.”

A cara da morte

Questionado pelo PÚBLICO sobre a razão por que, desde tão tenra idade, decidiu fotografar conflitos armados, Jean-Charles mostra-se algo defensivo. Após a cobertura da Guerra do Golfo (1991) e da guerra civil na Argélia (1992), o fotojornalista concluiu que, nesse contexto, “a morte tem sempre a mesma cara”. Escapou-lhe por diversas vezes. Em situação de emboscada, os primeiros tiros eram-lhe normalmente dirigidos. “Eu era o único branco estrangeiro na frente de combate. Não sei se era um alvo, mas aconteceu várias vezes os primeiros tiros serem dirigidos à minha posição. Pensariam, certamente, que era um mercenário.”

Nunca a morte esteve tão perto como em finais de 1994, no Huambo. Gutner estava a dormir no edifício vizinho do posto de comando – previa-se ofensiva para o dia seguinte. “Não sei porquê, de repente uma voz dentro de mim disse: ‘não te mexas’. Abri os olhos e percebi que a 20 centímetros do meu corpo passou uma torrente de balas. A UNITA estava a atacar o posto; tinham deixado as linhas de defesa e decidido atacar durante a noite. Ao meu lado, soldados tombavam, mas eu mantive-me imóvel. Nunca me vou esquecer dessa voz dentro de mim. Se me tivesse levantado, teria levado com os tiros no peito.”

Esse foi um dos motivos que o levaram a abandonar a fotografia de guerra, mais tarde, em 1997. Outro foi o nascimento da sua primeira filha. “Em Maio de 1997, depois de ter filmado as repercussões da queda do regime de Mobutu, no Zaire, regressei a Luanda e dediquei-me a outro tipo de trabalho. Fiquei mesmo alguns anos sem fotografar.”

Do passado ao futuro

Era Angola surge 22 anos após a conclusão desse trabalho fotográfico. “A proximidade das eleições angolanas [marcadas para 23 de Agosto] dá pertinência temporal à promoção do fotolivro. É importante que as pessoas se lembrem de como era o país há 15 anos, no momento em que terminou a guerra civil. A geração que tem agora 20 anos não viveu essa realidade e já exerce o direito de voto. O livro, infelizmente, não está à venda em Angola. Não me parece, por enquanto, que Angola sinta muito interesse pela sua História. Mas eu considero fundamental que saibamos de onde vimos para podermos determinar para onde vamos.”

Actualmente, Gutner mantém um vínculo profissional com agência SIPA Press e continua a fotografar, mas sobre temas mais ligeiros – sobretudo sobre vinho, comida, o mundo agrícola francês e temas da actualidade.

O seu fotolivro pode ser adquirido através do site da Amazon espanhola, inglesa e americana.

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