A lição de Chu Enlai

Como na história de Nixon e Chu Enlai, a questão que se coloca não é saber se as duas partes concordam sobre as consequências da Revolução Francesa.

Nixon foi à China, em 1972, e perguntou ao primeiro-ministro Chu Enlai sobre o impacto da Revolução Francesa. A resposta? “É muito cedo para dizer.” Rapidamente a expressão entrou nos livros, ilustrando o modo peculiar como os chineses percepcionam o percurso da História — desvalorizando o curto prazo, focados no que ficará.

À época, a história ajudou a construir uma narrativa: ilustrando as diferenças de perspectiva entre o Ocidente e a China, ajudava a aproximá-los. Para Nixon, que queria dar uma mão à China e contribuir para uma reaproximação entre os dois blocos, foi de boa utilidade.

Pouco importa, por isso, que 39 anos mais tarde se tenha descoberto que tudo partiu de um erro de tradução, que nenhum dos envolvidos alguma vez desmentiu: afinal, Chu Enlai não comentou as consequências da Revolução Francesa, mas as do Maio de 1968. Quando o mito acabou, já os EUA e a China tinham há muito reconstruído as suas relações.

Por cá, neste último ano e meio, António Costa não deu (só) a mão à China, acredita ter derrubado os últimos tijolos do Muro de Berlim, ao puxar PCP e Bloco para um apoio à governação. Em ano e meio, cumpriu-se a primeira fase da legislatura, aquela em que o verbo mais conjugado foi “reverter”; entrou-se no final da segunda, onde o verbo passou a ser “devolver” — fechando um ciclo que começou lá para trás, em 2014, ainda no esconjurado Governo de direita.

E é nesta fase que se o ouve o Governo dizer “não”, repetidas vezes. Diz não a professores, não a médicos, não a juízes, magistrados e polícias. E não, por consequência, aos parceiros de Governo.

Na última semana, com a pressão a subir, três membros do Governo recorreram a um dicionário do passado para traduzir esse “não”: “Quando se reduz a receita fiscal em montantes desse género, isso tem necessariamente consequências do lado da despesa”, resumiu Rocha Andrade, recusando os 600 milhões de IRS que o Bloco reclama para 2016. Van Dunem repetiu-o ontem, falando sobre a redução das taxas na Justiça (“Implica, obviamente, que se encontre formas de compensação”, disse ao Negócios). Assim como o fez antes Vieira da Silva, afastando as reformas antecipadas sem penalização, pedidas pela esquerda parlamentar.

Como na história de Nixon e Chu Enlai, a questão que se coloca não é saber se as duas partes concordam sobre as consequências da Revolução Francesa. A dúvida é saber quantas vezes pode o PS dizer não, recorrendo a um dicionário que podia ter sido escrito pela direita, sem que o Muro de Berlim se volte a levantar.

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